19 fevereiro, 2017


A verdade é um Poliedro?


Variante de la tristesse, 1957
René Magritte
Kerry Stokes Collection, Perth

René Magritte pintou uma tela (Variante de la tristesse, 1957) que me parece ser extraordinariamente expressiva sobre a efemeridade da vida. A angústia, inquietação e perplexidade que está subjacente ao confronto com a morte é decisiva na forma como interpretamos e vivemos a vida. Entre o tempo (sempre curto) que medeia o nascimento e a morte, o homem, como ser social, estabelece os termos das relações consigo próprio e com os outros.
Em comunidades locais e de proximidade as relações sociais assentaram sempre na confiança. O livre-arbítrio coexiste com o respeito pela sociedade em que se vive. E aí nasce a importância da verdade.

Vem isto a propósito da novilíngua que nos últimos meses tem invadido os meios de comunicação e as redes sociais. Na sequência das eleições norte-americanas e de tudo o que lhe esteve associado (embora o fenómeno já fosse anterior) o dicionário Oxford elegeu “pós-verdade” como palavra do ano de 2016, considerando-a um adjetivo que faz referência a “circunstâncias em que os factos objetivos têm menos influência na formação de opinião pública do que os apelos emocionais e as opiniões pessoais”. E assim, legitimada pela nova “Academia” das redes sociais e da imprensa de pasquim, passámos a incluir também no léxico corrente as palavras pós-facto ou facto alternativo, as quais foram imediatamente apropriadas por responsáveis políticos para justificarem o seu ignóbil discurso.   

Em vez de apelidarem com veemência de “mentira” tudo o que aparece com a chancela de “pós-verdade” ou “facto-alternativo”, a norma politicamente correta e as elites do mundo dito desenvolvido pouco se indignam e importunam por pronunciar oximoros com a naturalidade e normalidade que só a ignorância e a imoralidade podem explicar. Provavelmente porque as palavras perderam o significado. E a vida parece que também.

Há mais de dois mil anos que muitos se debruçam sobre a verdade e como alcançá-la. Houve filósofos que com alegorias evidenciavam a importância de distinguir a verdade das aparências. Consensual sempre foi que uma impressão falsa da realidade não é mais do que uma aparência. Uma ideia, opinião ou simplesmente impressão exterior que resulta do julgamento feito sobre um objeto não é necessariamente a verdade. A aversão à mentira pareceu sempre ser o caminho para uma vida boa e a base da ética e da civilidade. A busca da verdade era uma qualidade natural para o homem que procurava a perfeição.
“O que é a verdade?” (1). Embora a pergunta de Pilatos dirigida a Jesus Cristo não tivesse obtido resposta, não consta que tal tenha constituído a causa para a anomia que assistimos.
Verdade, semelhança, presunção, suposição, fé, indício, mentira tratam-se hoje como sinónimos. A verdade já não interessa. As mentiras legitimam-se como se se tratasse de um ponto de vista. Tudo parece ser relativo. Cada um pode ter a sua (ou as suas) verdade (s) independentemente dos factos, que passaram a ser irrelevantes. Substituímos a racionalidade que conduz à verdade, pela subjetividade temperamental e pelo relativismo emotivo que seleciona os critérios de acordo com a pessoal conveniência.

Não está em causa a existência da mentira, o que é relevante atualmente, é que ninguém se importa que ela seja veiculada com naturalidade e indiferença. A crença inabalável que há vários séculos foi transferida para as ciências, iluminismo, positivismo, racionalismo, progressismo, materialismo (que sucessivamente foram substituindo a escatologia transcendente como novos dogmas) é a isto que nos conduzem?
A liberdade conduz a elementos positivos quando ligada a uma matriz ética. Hoje contudo, parece que todos desprezam a sociedade em que vivem, e portanto nenhuma ética se afigura necessária.

“Artigo I: Fica decretado que agora vale a verdade (….) Artigo V: O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa”(2). Como se sentiria hoje Thiago de Mello perante a atual realidade?!

Parece que num mural da Universidade do Porto alguém escreveu: “Queremos mentiras novas”. Possivelmente passámos a estar convencidos que para superar a realidade iníqua que temos, só a mentira seria alternativa. Na aldeia de meus avós havia a “palavra de honra”. Hoje parece que as palavras já não têm qualquer virtude. Vícios e virtudes: tudo parece ser relativo.
O país mais desenvolvido do mundo (EUA) que no último século pretendeu impor o seu “modelo” ao resto do mundo, dá-nos um exemplo de degenerescência moral que poucas comunidades no planeta parecem compreender.

A continuar assim, não será surpreendente que num futuro próximo, poucos compreendam a ironia incluída na literatura de Oscar Wilde (3):

John: Gwendolen, é uma coisa terrível para um homem descobrir de repente que toda a sua vida não disse senão a verdade. Podes perdoar-me?
Gwendolen: Posso. Pois sinto que com certeza hás-de mudar.

Deveria ser obrigatória a prescrição em grandes quantidades, de romances, poesia, teatro, música ou outras formas de criação artística a quem pretendesse assumir responsabilidades políticas. E algumas doses de História. Talvez ajudasse. Entre o nascimento e a morte, não pode ficar um vácuo de virtudes pessoais. A desorientação moral e o impulso do momento não se podem sobrepor à busca da verdade que oriente qualquer comunidade. A verdade, a sabedoria, a coragem, a humanidade, a justiça, são algumas das virtudes de sempre para superar quaisquer teorias amorais ideologicamente veiculadas. A verdade não é um poliedro.


(1)                Bíblia Sagrada | João 18:38
(2)                Thiago de Mello | Os Estatutos do Homem
(3)                Oscar Wilde |A importância de ser Earnest, in A importância de ser Earnest e outras peças | Relógio d’Água |Março 2003
 

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