Ermegildo nunca fora homem de fé.
Agora, ali estava, ajoelhado de mão dada com o remorso e com a angústia
entranhados por dentro. Na verdade, de pouco lhe valeu o cheiro a incenso e os
por “minha culpa, por minha tão grande culpa” das missas dominicais. Os seus
encontros amorosos estavam cada vez mais refinados. Ao fim de algumas semanas
recebia a vizinha com uma encenação que em nada tinha que ver com a timidez
inicial.
“A senhora faça o favor de
entrar.”
E a vizinha entrava. Sempre
obediente e atenta aos pormenores cada vez mais requintados na exigência do
vizinho.
“Faça o favor de dizer.”
E a vizinha fazia o favor. Dizia
que vinha por este ou por aquele assunto sempre muito urgente e em falta de
cumprimento. Ermegildo tornava-se sério, a repartição estava em hora de fecho,
mas se quisesse aguardar na sala de espera, talvez fizesse algo por ela.
Encaminhava-a para o sofá da sala e dizia-lhe para se sentar. Uma vez sentada,
a vizinha, trocava a perna e inclinava-se de forma que a coxa fosse mais que
uma promessa mas uma certeza inabalável perante o olhar inquisidor de Ermegildo
que se sentava na mesa oposta para onde tinha trazido a sua velha máquina de
escrever.
Começava a datilografar
lentamente com os olhos cravados no papel. Depois, aos poucos, e com movimentos
quase imperceptíveis, olhava a vizinha que se lhe apresentava defronte, mas com
um olhar tão sério que quem visse aqueles dois na sala de estar do primeiro
andar do prédio do Bairro do Amor acreditaria que estavam ali o funcionário e a
cidadã, ambos em suas funções perfeitamente legítimas. Ermegildo prolongava a
datilografia do ofício em notas melosas e cadenciadas enquanto a vizinha, ao
fim de algum tempo, se começava a despir. Sentada e sem qualquer intenção
reveladora no gesto que fizesse antecipar o movimento seguinte. Poder-se-ia
dizer que o fazia como se não estivesse mais ninguém na sala, como se este
fosse um ritual de um passado longínquo que reincidia naquele fim de tarde.
Ermegildo observava a nudez da vizinha e emudecia o tremor que lhe atravessava
a garganta. Ao mesmo tempo interrogava-se sobre si mesmo, sobre a vida toda que
o levara até àquele momento. Afinal também era isto. Como se descobrisse uma
palete de cores que lhe tresmalhavam a certeza do preto e branco com que regia
a vontade e a noção de certo e errado. Foi num sábado à tarde que percebeu que
estava irremediavelmente apaixonado. Não pela vizinha, que aguardava nua da
cintura para cima, mas pela possibilidade que aprendera a reconhecer como um
recomeço. Cada decisão que tomava sabia-lhe agora a uma oportunidade com que
nunca antes sonhara.
Pedro Gonçalves
com John Grant, marz
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