05 fevereiro, 2017

O Bairro do Amor 2

Ermegildo nunca fora homem de fé. Agora, ali estava, ajoelhado de mão dada com o remorso e com a angústia entranhados por dentro. Na verdade, de pouco lhe valeu o cheiro a incenso e os por “minha culpa, por minha tão grande culpa” das missas dominicais. Os seus encontros amorosos estavam cada vez mais refinados. Ao fim de algumas semanas recebia a vizinha com uma encenação que em nada tinha que ver com a timidez inicial.
“A senhora faça o favor de entrar.”
E a vizinha entrava. Sempre obediente e atenta aos pormenores cada vez mais requintados na exigência do vizinho.
“Faça o favor de dizer.”
E a vizinha fazia o favor. Dizia que vinha por este ou por aquele assunto sempre muito urgente e em falta de cumprimento. Ermegildo tornava-se sério, a repartição estava em hora de fecho, mas se quisesse aguardar na sala de espera, talvez fizesse algo por ela. Encaminhava-a para o sofá da sala e dizia-lhe para se sentar. Uma vez sentada, a vizinha, trocava a perna e inclinava-se de forma que a coxa fosse mais que uma promessa mas uma certeza inabalável perante o olhar inquisidor de Ermegildo que se sentava na mesa oposta para onde tinha trazido a sua velha máquina de escrever.
Começava a datilografar lentamente com os olhos cravados no papel. Depois, aos poucos, e com movimentos quase imperceptíveis, olhava a vizinha que se lhe apresentava defronte, mas com um olhar tão sério que quem visse aqueles dois na sala de estar do primeiro andar do prédio do Bairro do Amor acreditaria que estavam ali o funcionário e a cidadã, ambos em suas funções perfeitamente legítimas. Ermegildo prolongava a datilografia do ofício em notas melosas e cadenciadas enquanto a vizinha, ao fim de algum tempo, se começava a despir. Sentada e sem qualquer intenção reveladora no gesto que fizesse antecipar o movimento seguinte. Poder-se-ia dizer que o fazia como se não estivesse mais ninguém na sala, como se este fosse um ritual de um passado longínquo que reincidia naquele fim de tarde. Ermegildo observava a nudez da vizinha e emudecia o tremor que lhe atravessava a garganta. Ao mesmo tempo interrogava-se sobre si mesmo, sobre a vida toda que o levara até àquele momento. Afinal também era isto. Como se descobrisse uma palete de cores que lhe tresmalhavam a certeza do preto e branco com que regia a vontade e a noção de certo e errado. Foi num sábado à tarde que percebeu que estava irremediavelmente apaixonado. Não pela vizinha, que aguardava nua da cintura para cima, mas pela possibilidade que aprendera a reconhecer como um recomeço. Cada decisão que tomava sabia-lhe agora a uma oportunidade com que nunca antes sonhara.

Pedro Gonçalves
com John Grant, marz

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