Como se acordasse de um sono profundo que
sempre fora a sua vida. Divagava em reflexões profundas ao balcão da repartição
de finanças e por mais do que uma vez deixou os utentes entregues a um monólogo
inquisidor sobre terrenos e partilhas. Ou sobre o imposto que fora cobrado e
todos esses assuntos que levam o cidadão comum a procurar a dita repartição em
que Ermegildo emprega os dias.
Esses, os dias, foram passando.
Poder-se-ia dizer que a clandestinidade revolucionária das carícias e afetos
das tardes de sábado foram ganhando forma e conteúdo. Ermegildo aprendera a reconhecer
a vizinha. A olhar devagar a mulher que subia descalça as escadas de madeira e
que parava defronte da sua porta. Já não batia, limitava-se a esperar que
Ermegildo rodasse o trinco, coisa que acontecia com uma precisão exagerada.
Defeito de funcionário público, zeloso e intumescido na oportunidade que se lhe
apresentava.
A linha com que se cose a vontade de
cada um tem caprichos que nem sempre a razão antecipa. Numa tarde de sábado, inexplicavelmente
e contrariando qualquer previsão, Herondina Assunção, esposa fiel e dedicada ao
ensino do catecismo professo pela Santa Igreja Católica, foi tomada por uns
calores que lhe fraquejaram as pernas e a fizeram quase desmaiar aos pés do
Santíssimo. Regressou a casa. Mais cedo do que o normal e sem nunca imaginar a
surpresa que a aguardava do outro lado da porta. Ermegildo viu a cara da
mulher. Percebeu o esgar de dor que lhe atravessou a face e teve a perfeita
noção que o mundo tal como o conhecera acabara de mudar irremediavelmente e para
sempre. Herondina, retirou-se. Desceu apressada as escadas do prédio e durante dois
dias ninguém soube por onde andou ou o que terá feito. Ao fim desses dois dias
regressou a casa e nunca mais voltou a falar para o marido. Passaram semanas,
meses e Herondina manteve a mesma expressão fria e distante até uma tarde em
que Ermegildo regressou do trabalho e a encontrou morta caída no chão do
quarto. Um AVC hemorrágico. Fulminante, segundo o médico, mas para Ermegildo um
prego cravado na penitência que lhe caía sobre os ombros. Aquele era apenas o
resultado dos seus actos, sabia-o bem. Herondina morrera com uma veia rebentada
pelo assombro e repugnância entranhados pela descoberta de um final de tarde de
sábado que agora parecia a Ermegildo tão distante. Aquele entusiasmo e alegria
que sentia nos braços da vizinha eram como a receita de um prato que lhe
provocava mais que tudo, um desconforto, uma sensação de aperto que não se
apagava nunca. Mas é velho o ditado, se comeu a carne, que roa os ossos! E
assim, depois do funeral de Herondina entregou-se ao silêncio. Como se ao
prolongar o comportamento da mulher lhe prestasse uma última homenagem e
penitenciasse o martírio que o sufocava por dentro. Tratou da reforma
antecipada e passava agora os dias enfiado em casa sem que nunca ninguém se
lembrasse dele. Nem mesmo a vizinha, cúmplice do desarranjo emocional que se
instalava no primeiro andar à direita de quem sobe as escadas do prédio do
Bairro do Amor. Essa, mudara-se pouco depois da descoberta inesperada de Herondina
e emigrou para parte incerta.
Pedro Gonçalves
Pedro Gonçalves