19 janeiro, 2017


Entre tanto

O Grito
Edvard Munch
National Gallery Norway

Gritamos quando a realidade nos interpela de forma intensa. Deixamos de gritar quando, mesmo instados a fazê-lo, nos faltam as forças, estamos anestesiados ou ficámos empedernecidos.
Economia. Não era por aqui que tinha planeado começar, mas não me resta alternativa. Se concordo com Bachelard quando diz que “aquilo que se vê não se compara com aquilo que se imagina”, julgo, contudo, que dificilmente a imaginação humana poderia considerar a realidade que pretendo comentar. Todos os anos em janeiro, a organização não-governamental britânica OXFAM publica relatório sobre repartição da riqueza no mundo. E foi o que aconteceu no início desta semana com o relatório An economy for the 99%
As conclusões são estarrecedoras:
1. Em 2016, 8 pessoas no mundo detêm tanta riqueza como 50% da população mundial mais pobre. No relatório sobre 2015, eram 62 pessoas, e em 2010 eram 388 pessoas que concentravam riqueza equivalente às 50% mais pobres;
2. Desde 2015 (mais cedo do que se previa) que 1% da população mais rica detém mais riqueza que os restantes 99%;
3. A população 10% mais rica detém 89% da riqueza mundial;
4. No relatório de 2015 (An economy for the 1%), refere-se que desde 2000, 50% da população mundial mais pobre apenas recebe 1% do acréscimo global de riqueza que ocorre no período.
Os detalhes e estatísticas poderiam continuar, mas já chegam estes números indignos. As conclusões do relatório de novembro do Crédit Suisse (“Global Wealth Report 2016”) apontavam no mesmo sentido.
Os recursos da nossa terra comum não podem ser alocados de forma tão ineficiente e iníqua. A economia tem de estar ao serviço do homem. A primazia do homem não pode nunca ser ignorada.
Não nos podemos resignar a um funcionamento global da economia que motive diferenças tão assinaláveis e que constituem atentado à dignidade humana. Segundo Catherine Denny, um terço da população mundial vive pior do que as vacas na Europa que recebem, em média, 2 euros por dia em subsídios.
A ausência de soluções terá consequências desastrosas. O regresso do populismo, o descrédito dos actores políticos, a aversão ao estrangeiro, o medo transformado em normalidade, a tentativa de personificação do mal, a guerra, são consequências e não a causa de um problema maior cuja origem está numa desigualdade inédita (mesmo admitindo o elevado número de pessoas que têm saído da pobreza extrema).
Não conheço as soluções mas algo tem de ser feito. Tem de haver solução. Há sempre solução. Se o homem vai à lua e se consegue descodificar o genoma humano, tem inteligência e criatividade para construir soluções, sempre no respeito da dignidade e da natural liberdade humana. Assim o queira fazer. E por favor, que se coloque este problema no debate central e deixem de nos inundar e anestesiar com falsos problemas.
Não nos podemos empedernecer ao ponto de deixar de gritar. Não nos podemos resignar. Entre tanto recurso disponível, é fundamental que entretanto se faça algo. Para que não se cumpram os versos de Luis Filipe Castro Mendes:
 
“Nós vivemos da misericórdia dos mercados.
Não fazemos falta.
O capital regula-se a si próprio e as leis
são meras consequências lógicas dessa regulação,
tão sublime que alguns vêem nela o dedo de Deus.
Enganam-se.
Os mercados são simultaneamente o criador e a própria criação.
Nós é que não fazemos falta” (*)


                                                                                                                                                                     Paulo Reis, in KZ

(*) A misericórdia dos mercados, in A Misericórdia dos Mercados, ed. Assírio & Alvim, 2014