O Grito
Edvard Munch
National Gallery Norway
Gritamos quando a realidade nos
interpela de forma intensa. Deixamos de gritar quando, mesmo instados a
fazê-lo, nos faltam as forças, estamos anestesiados ou ficámos empedernecidos.
Economia. Não era por aqui que
tinha planeado começar, mas não me resta alternativa. Se concordo com Bachelard
quando diz que “aquilo que se vê não se compara com aquilo que se imagina”, julgo,
contudo, que dificilmente a imaginação humana poderia considerar a realidade
que pretendo comentar. Todos os anos em janeiro, a organização
não-governamental britânica OXFAM publica relatório sobre repartição da riqueza
no mundo. E foi o que aconteceu no início desta semana com o relatório “An economy for the 99%”.
As conclusões são estarrecedoras:
1. Em 2016, 8 pessoas no
mundo detêm tanta riqueza como 50% da população mundial mais pobre. No
relatório sobre 2015, eram 62 pessoas, e em 2010 eram 388 pessoas que
concentravam riqueza equivalente às 50% mais pobres;
2. Desde 2015 (mais cedo do que
se previa) que 1% da população mais rica detém mais riqueza que os restantes
99%;
3. A população 10% mais
rica detém 89% da riqueza mundial;
4. No relatório de 2015 (“An economy for the 1%”), refere-se que desde
2000, 50% da população mundial mais pobre apenas recebe 1% do
acréscimo global de riqueza que ocorre no período.
Os detalhes e estatísticas
poderiam continuar, mas já chegam estes números indignos. As conclusões do
relatório de novembro do Crédit Suisse (“Global Wealth Report 2016”) apontavam no mesmo sentido.
Os recursos da nossa terra comum
não podem ser alocados de forma tão ineficiente e iníqua. A economia tem de
estar ao serviço do homem. A primazia do homem não pode nunca ser ignorada.
Não nos podemos resignar a um
funcionamento global da economia que motive diferenças tão assinaláveis e que
constituem atentado à dignidade humana. Segundo Catherine Denny, um terço da
população mundial vive pior do que as vacas na Europa que recebem, em média, 2
euros por dia em subsídios.
A ausência de soluções terá consequências
desastrosas. O regresso do populismo, o descrédito dos actores políticos, a
aversão ao estrangeiro, o medo transformado em normalidade, a tentativa de
personificação do mal, a guerra, são consequências e não a causa de um problema
maior cuja origem está numa desigualdade inédita (mesmo admitindo o elevado
número de pessoas que têm saído da pobreza extrema).
Não conheço as soluções mas algo
tem de ser feito. Tem de haver solução. Há sempre solução. Se o homem vai à lua
e se consegue descodificar o genoma humano, tem inteligência e criatividade
para construir soluções, sempre no respeito da dignidade e da natural liberdade
humana. Assim o queira fazer. E por favor, que se coloque este problema no
debate central e deixem de nos inundar e anestesiar com falsos problemas.
Não nos podemos empedernecer ao
ponto de deixar de gritar. Não nos podemos resignar. Entre tanto recurso
disponível, é fundamental que entretanto se faça algo. Para que não se cumpram
os versos de Luis Filipe Castro Mendes:
“Nós vivemos da misericórdia dos
mercados.
Não fazemos falta.
O capital regula-se a si próprio e as
leis
são meras consequências lógicas dessa regulação,
tão sublime que alguns vêem nela o dedo de Deus.
Enganam-se.
são meras consequências lógicas dessa regulação,
tão sublime que alguns vêem nela o dedo de Deus.
Enganam-se.
Os mercados são simultaneamente o criador
e a própria criação.
Nós é que não fazemos falta” (*)
Paulo
Reis, in KZ
(*) A misericórdia dos mercados, in A Misericórdia dos Mercados, ed.
Assírio & Alvim, 2014