02 janeiro, 2017

O Bairro do Amor 1

capítulo I

O Bairro do Amor tem oito casas e um prédio de quatro andares. Resiste ao tempo e ao avanço dos tempos modernos. Pouco se pode dizer sobre a arquitetura ou sobre as ruas do bairro. Uma estrada estreita com passeios revestidos a calçada desdentada que vai ondulando de casa em casa.
O prédio é o número onze. Tem janelas de madeira carcomida pelo sol e canteiros de flores improvisados com garrafões de plástico esventrados por Dª Emília Maria, senhora viúva do rés-do-chão direito, sempre atenta ao movimento dos utentes do prédio. Dir-se-ia que tem uma sensibilidade apurada ao nível do extrassensorial. Descobre sons onde mais ninguém se atreve e não há entrada ou saída do prédio que fique por registar no caderno da memória. Uma sentinela que nem guarda inglesa à porta do Palácio de Buckingham. Sem farda, mas com a dedicação de uma coruja.
Esta sensibilidade causa um transtorno enorme a Ermegildo Serôdio, funcionário da repartição de finanças que mora no primeiro andar à direita de quem sobe as escadas no prédio do Bairro do Amor. Ermegildo é casado com Herondina Assunção, mas tem um romance aceso com a vizinha do rés-do-chão esquerdo que lhe bate à porta sempre que a esposa se ausenta. Começou por ser um pouco de sal que havia acabado, mais tarde devolveu o sal e garantiu que se alguma vez precisasse de alguma coisa estaria ao dispor. Ermegildo é homem sério e pouco dado a desvarios. Na segunda vez a vizinha apareceu com uma carta das finanças que não entendia e uma camisa de dormir num tecido tão transparente como a água. Havia de o descrever assim na recordação dos dias seguintes, que lhe martelava e deformava a concentração ao balcão da repartição de finanças. Ficou doente. Meteu baixa, coisa que nunca tinha feito na vida e sofreu deitado na cama acompanhado de bolachas e chá de cidreira que “é bom para os nervos”. Quem o garante é Herondina Assunção que, ao ver assim o marido, prostrado e branco como a cal, se resolveu à cura do defunto. Uma ida a pé a Fátima, terra de milagres e um punhado de velas para acender ao longo do caminho. Levaria três dias, mas se isso ajudasse o marido, pois então, iria com “fé e Deus Nosso Senhor a seu lado”. Escusado será dizer que ainda o Padre Nosso ia a meio, e Herondina a pouco mais de dois quilómetros do Bairro do Amor, já a camisa de dormir, transparente como a água, se evaporava do corpo roliço e aceso da vizinha de Ermegildo Serôdio.
Quando Herondina Assunção regressou de Fátima encontrou o marido “dez anos mais novo”. Foi Deus Nosso Senhor e a Virgem quem lhe atenderam as preces! Estava decidida, passaria a dar catequese na paróquia e assim, qual divina providência, Ermegildo passou a ter os sábados de tarde para se entregar ao amor proibido da vizinha do rés-do-chão esquerdo. A princípio, desajeitado e com ânsia de quem nunca experimentou a vida toda na ponta dos dedos. Faziam amor deitados no chão porque a consciência de Ermegildo não lhe permitia a cama ou qualquer outro aconchego de uso comum com a senhora sua esposa. Assim que fechava a porta e sentia os passos da vizinha descer a escada sofria uns pesados remorsos e para equilibrar o desarrumo dos dias passou a frequentar a missa ao domingo com Herondina que entrava cada vez mais agradecida e devota na Igreja da vila.


(…)

Pedro Gonçalves

com Antony and the Johnsons, a child of god