Se eu fosse poeta isto
seria uma Elegia
O
Julgamento Final (fragmento)
Miguel Ângelo
Capela
Sistina, Vaticano, Roma
Os julgamentos finais não ocorrem apenas nas pinturas da Capela
Sistina.
“As sociedades tornam-se
modernas, sugeriu o filósofo Hegel, quando as notícias
tomam o lugar da religião como nossa fonte central de orientação, a nossa pedra
de toque da autoridade” (1).
Se as notícias assumem esta
função religiosa, quem são hoje os novos profetas e seus acólitos? E quem
assume o papel de fariseu, nesta nova
modernidade? Os novos “Livros Sagrados”, serão eles os tabloides impressos à
venda nos quiosques? Com versão digital e edição televisiva? E quem assume o
papel de Inquisidor-Mor na defesa da nova “Palavra Sagrada”? Talvez
jornalistas, magistrados, inspetores disto e daquilo, uns e outros e tudo
misturado. Embora (a)pareça a cores, está tudo a preto e branco. Talvez na
verdade, só a preto. Vazio. Como algumas cabeças. Tudo simples. Com a clareza
de uma brincadeira pueril de “polícias e ladrões”: quem não é polícia só poderá
ser ladrão. Óbvio, não é? As massas precisam de mensagens simples.
Bem-aventurados os sábios
defensores da nova “Palavra Sagrada”. Ou antes, das Palavras Sagradas, pois
amanhã a palavra pode ser diferente da de hoje. Mas isso pouco importa, desde
que quem a profira sejam os mesmos Inquisidores. Haja espetáculo. E que ninguém
ouse questionar, contestar ou sequer tentar alcançar pela compreensão racional os
supremos desígnios dos novos Senhores! Ah, hereges! Sob o manto da autoridade será
decretado, neste mundo, e de imediato, o Julgamento Final.
A inspiração vem da Rainha de
Copas: “Cortem-lhe a cabeça! … Primeiro a sentença, depois a decisão do júri” (2).
(Só faltou explicar a quem se inspira diariamente nesta máxima que isto era
ironia.)
“Acredita nos que procuram a
verdade. Desconfia dos que a encontram” dizia André Gide. Pois é. Mas as
notícias trazem-nos hoje verdades absolutas. Até ao dia seguinte, apenas. E que
fazer com as vítimas diárias dessas efémeras certezas? Convoca-se um inspetor
que as contabiliza como “dano colateral”. Beatificado seja o inspetor!
Pois eu cá por mim, vou continuar
a optar pela Bíblia: é que prefiro o “Cântico dos Cânticos”!
“Se o seu quotidiano lhe parece
pobre, não o acuse, acuse-se a si, diga a si mesmo que não é poeta bastante
para convocar as riquezas dele; pois, para o criador, não existe pobreza
alguma, nem lugar pobre e indiferente” (3). Adoro esta pequena frase
do notável livro “Cartas a um jovem poeta”. Mas é por não conseguir seguir este
conselho de Rilke que não escrevo poesia. (Deixo essa nobre missão para as
sábias poetas que partilham este blogue).
Assim, como não sou poeta isto
não é uma Elegia. Este texto é apenas uma pobre, triste e amargurada lamentação.
(1) Alain de
Botton, As notícias: um manual de utilização, Ed. D. Quixote, 2014
(2) Lewis Carrol,
Alice no país das maravilhas, Publicações Europa-América, 1998(3) Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta, Antígona, 2016
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