Acto Primeiro (Versão 2.1)
[Os dois corpos celestes permanecem
deitados em decúbito ventral. Nada se moveu. A Terra continua suspensa, mas a
tocar o chão, prostrada, também, como os corpos. A esfera achatada que a compõe
aparenta ter perdido volume, aparenta mais achatada que nunca, mantém o seu
formato frouxamente. É visível, ao longe, a tabuleta improvisada que a
identifica.
<----
TERRA
Essa tabuleta é útil a quem passa.
Os dois corpos celestes, adormecidos, balbuciam alternadamente, materializando
os frutos de pesadelos, em tom crescente]
[quase inaudivelmente]:
@: Aos 64 anos, Bruna Lombardi, de
biquíni, reúne elogios.
π: Trump proíbe entrada de
muçulmanos nos EUA.
[entre-dentes e vagarosamente]
@: Após separação de Angelina Jolie,
Brad Pitt terá engravidado Kate Hudson.
π: Cartazes em manifestação em
Chicago anotam: "Rise up".
[sussurrando]
@: Salvem a Melania.
π: Rússia financia campanha de Le
Pen.
[ciciando]
@: Casa Branca enganou-se a escrever
Theresa May e esta ficou com nome de atriz porno.
π: Madeleine Albright admite
registar-se como muçulmana.
[aumentando o volume e o ritmo mas ainda baixinho e vagaroso]
π: Hitler eleito democraticamente.
@: Melania (o)usada na capa da
Vanity Fair mexicana.
π: [conservando o volume mas em ritmo crescente, denunciador de nervosismo, ainda
deitado, mas por pouco tempo] Impressora 3D imprime pele humana,
100% funcional.
Cientistas criam embrião híbrido
metade porco, metade humano.
"1984" de Orwell esgota no
Amazon.
Impressora 3D imprime pele humana,
100% funcional.
Cientistas criam embrião híbrido
metade porco, metade humano.
"1984" de Orwell esgota no
Amazon.
repeat
repeat
@: [em volume idêntico mas tom conformado e suspirante] Valter Hugo Mãe não matou o Pai
Natal mas disse umas verdades sobre os orifícios da tia de alguém.
[π levanta-se energicamente, em sobressalto e em volume e ritmo crescente,
nervoso]
π: "Todas as criaturas que
caminham sobre duas pernas são nossas inimigas"*
"Todos os hábitos do Homem são
perversos"*
"Nenhum animal usará
roupas"*
"E vou poder continuar a usar
laçarotes na crina?"*
[gesticulando com um movimento de rotação da
cabeça em torno do pescoço, 90º e -90º, 90º e -90ºe 90º e -90º]
Não, não, não! Não vamos simplificar
os 7 mandamentos!
@: [Ainda deitada, em tom
suspirante, tapando os ouvidos com cada uma das mãos, respectivamente]
Vintage, Gourmet
Vintage, Gourmet
Vintage, Gourmet
π: [Abanando a cabeça lentamente, olhos fixos no chão, em tom de resignação]
"Quatro patas bom, duas pernas
mau."*
π: [Ganhando fôlego, timidamente] Spiegelman retrata os nazis como gatos, os
judeus como ratos, os polacos como porcos e os americanos como cães. Todos são
terrivelmente humanos"**
@: [Tirando as mãos e dando bofetada a si própria] Rússia aprova "lei da
bofetada".
π: [Em ritmo novamente crescente] Porque maior do que toda a vergonha da guerra
é a vergonha de os homens já nada quererem saber dela, suportando que haja
guerra, mas não que a tenha havido.***
@: [Abrindo os olhos
lentamente]Pedro Chagas Freitas.
π:[Gritando] "(17) "Vem!
Vou mostrar-te como será julgada a grande prostituta, que está sentada à beira
de muitas águas. Os reis da terra prostituíram-se com ela. Os habitantes da
terra ficaram bêbados com o vinho da sua prostituição" (20) O fim dos
tempos já começou- Depois disto vi um Anjo descer o céu. (...) Vi então tronos,
e os que se sentaram nos tronos receberam o poder de julgar."****
@: [Acorda sobressaltada, senta-se ortogonalmente à superfície e grita] Um dia
vai arder tudo. Tudo o que vês, irá arder um dia.
π: [No mesmo tom aflito] Escathon,
Escathon...
@:[A chorar e soluçar] Um dia irá
arder tudo!
[Os corpos celestes voltam a cair no chão, exaustos, como corpos cilíndricos e
invertebrados. Após a queda segue-se um momento de silêncio interrompido pelo
movimento enérgico de @, que se levanta a correr. π continua imóvel e
deitado.]
@: A música. A música. A música. Espera, a música. O nosso produtor de som
abandonou-nos. Espera.
[@ mexe no telemóvel e faz soar as colunas. Coloca um gancho no cachaço de π e
no seu. Enquanto ouvem a música PLAY Kraftwerk | News,
os dois corpos celestes são elevados de mão dada, ficam suspensos. Todo o
cenário escurece. Há leves luzes que imitam estrelas. Há espelhos que
multiplicam essas luzes de estrelas. E outros espelhos que multiplicam as
imagens dos espelhos. Há difusão de imagens. Dificuldade em identificar
objectos. Os nossos corpos celestes são luzes incapazes de gerar imagens nos
espelhos. Observam que a Terra também não reproduz imagem no jogo de espelhos.
Olham-na com tristeza. Choram e chove. Há um espelho no chão. Confundem-se os
pingos da chuva, reproduzidos pelos espelhos em movimentos ascendentes e
descendentes, como se desaguassem numa nascente. Princípio e fim unidos. Os
corpos continuam a subir muito lentamente e só param quando alcançam as
tabuletas que os identificam
<---- π
<----
@
Continuam
a olhar para a Terra]
@: Um dia vai arder tudo.
π: Como eu gostava que concordássemos
em discordar!
@: Parecem formigas.
π: As formigas não destroem os seus
próprios carreiros.
[Observam novamente a Terra, em
silêncio]
π: [retoma conversa]Os sobreviventes do "11 de Setembro", os que
estavam dentro do edifício não se aperceberam do que se passava, ao contrário
do resto do mundo.
@: "Há que sair da ilha para
ver a ilha".
π:[vira-se surpreendido] Saramago?
@: Hoje já não seria assim. Nas
redes sociais apareceria, sordidamente, cada pormenor, na perspectiva de cada
vítima.
π: Houvesse rede.
π: [em tom profundo-cavernoso]"Vi então tronos, e os que se sentaram nos tronos receberam o poder de
julgar."****
@: Um dia será assim.
π: Assim, como?
@: Uma espécie de purgatório
digital.
π: E não precisaremos de ninguém
para nos julgar - apunhalados pela nossa consciência, qual Samurai.
@: Olha o talhante.
π: Que fará a entrar no W.C.
público?
@: Não quero imaginar. Mas estou
contente por ser vegetariana.
π: Deves pensar que o Miso é mais
higiénico.
@: [dirigindo olhar sedutor] Tu
sabes, em questões de comida, prezo a higiene acima de tudo.
π: Olha o fanático do Benfica a
contornar o Café Central, na sua lambreta icónica.
@: E o espalhador de folhas? Haverá
profissão mais inútil?
π: Conheço uma.
@: Eu também. A tua.
π: Nunca serei capaz de te dar
poesia, pois não?
@: Sabes o que penso da poesia. E
não faço questão de mudar de opinião.
π: Sempre imaginei que o amor nos
salvasse.
@: O amor? Achas? Achas mesmo?
Inocência! O amor é a forma de egoísmo mais pura que conheço. Preferimos amar a
ser amados. Somos felizes quando nos sabemos capazes de amar. E não é para dar
a mão a quem amamos, mas para conhecermos os limites da nossa.
π: Então por que sobrevivemos?
@: Porque tudo o que nos garante a
sobrevivência dá-nos prazer: comer e foder.
π: E sobreviveremos?
@: Não sei, passamos a vida a
contabilizar calorias e doenças venéreas.
π: Talvez sinta algum medo.
@: O medo salva-nos.
π: E tolda-nos. Inibe-nos. Não nos
deixa sermos o que gostaríamos de ser.
@: Na maioria das vezes, é uma
bênção. Se cada ser humano fosse na medida em que gostaria de ser,
verdadeiramente, talvez já não existisse mundo.
π: A maldição do homem é o que o
distingue dos outros animais.
@: E ainda dizem que "nada é
mais bonito que a inteligência"*****.
π: Crítica da razão Pura?
@: Não! Lidl- a campanha do creme
Cien Aqua - "para mulheres mais do que bonitas".
π: O conhecimento é, cada vez mais,
um lugar comum.
@: O que é verdadeiro acaba em
clichet porque funciona.
π: Até não haver matéria de clichet
que suporte os milhões. Irónica democracia. Não nos resta mais nada em que
acreditar?
@: Eu acredito no Head &
Shoulders e no Agroal, ajudam-me na psoríase.
π: Desculpa se te acordei, há pouco.
@: Eu nunca acordo- durmo desde que
nasci.
π: E quando pretendes acordar?
@: Hoje não, com toda a certeza.
Hoje é mau dia para acordar.
π: Por teres medo?
@: Claro. Medo, medo, medo é tudo o
que tenho.
π: Não acredito. Além disso, o teu
medo não é o meu medo.
@: Não basta haver nomes a mais
ainda queres que sejam ambíguos?
π: Os conceitos nunca serão a mais.
Aumentam os conceitos, aumenta a liberdade.
@: E, no entanto, criá-los é dar
oportunidade de nomear a estupidez, a inutilidade, a futilidade.
π: Nós somos
diferentes. Não falamos a mesma língua.
@: Mas compreendemo-nos.
π: Às vezes tenho as minhas dúvidas.
@: Experimenta.
[π faz um pequeno compasso de espera e ataca]
π: Jogos de linguagem.
@: "Cada cabeça sua
sentença".
π: Cinética filosófica.
@: "Onde vai um português vão
dois ou três".
π: Imperativo categórico.
@: "Quem tem cu tem
medo"
π: Imanentização
escatológica.
@: "A esperança é a última a
morrer".
[π, ainda suspenso e cintilante, olha
para a Terra. A Terra vai-se enchendo de luz. Aparenta mais volume mas pode ser
uma mera ilusão óptica. Os dois corpos suspensos bamboleiam em direcção à
Terra, imitando o movimento de voo. Espetam as suas tabuletas na Terra, pela
seguinte ordem:
<---- TERRA
<---- π
<----
@
Nenhuma
das tabuletas gera imagem nos espelhos. Os corpos e a Terra também não. Deitam-se sobre ela em decúbito
ventral, acompanhando a sua forma esférica-informe, reservando aos braços a
posição lassa que lhes é habitual.]
π: Achas que ainda há esperança?
@: Para nós? Que importa? Somos
personagens de ficção.
π: [ri desalmadamente] Nós?
ahahahah? O quê?
@: [séria] Sim. Há quem queira fazer
de nós super-heróis da BD.
π: Tipo Dog Mendonça e Pizzaboy?
@: Eu disse-te que não estávamos
sozinhos.
π: Assusta-te?
@: Sermos fruto da imaginação ou
heróis em cuecas?
π: Não estarmos sozinhos.
@: Se formos fruto da imaginação,
acabamos onde começamos e começamos onde acabamos. Ou não achaste estranho o
espelho não reproduzir a tua imagem?
π: É por isso que este Acto continua
a ser o Primeiro?
@: Não. Isso é um capricho
matemático! Tal como o Nautilus Marinho e os coelhos, obedecemos à sucessão de
Fibonacci.
[Os dois corpos viram-se lentamente, sincronamente, posicionam-se em decúbito
dorsal. Observam as estrelas e as imagens das estrelas. E as imagens das
imagens. Até que adormecem, balbuciando]
π: Terra... Espelho... Ausência de
imagem... Fruto da imaginação?... Terra?
[Ao longe ouve-se PLAY Nick Cave& The
Bad Seeds | Magneto
E o mistério não ficou desfeito:
terá o produtor de som voltado a tempo do fim do segundo Acto Primeiro?]
<--- vasleuqaR <---
______
* George Orwell | A quinta dos animais | Antígona |
2013
** Revisão crítica de Maus de Art Spiegelman in The Times
***Karl Kraus | Os últimos dias da humanidade |
Antígona | 2003
**** Bíblia Sagrada
***** Campanha publicitária do Lidl
NOTA: Neste texto, qualquer semelhança com factos verídicos não é pura coincidência.