11 julho, 2017

O Bairro do Amor 4

Ermegildo tornou-se num ermita refugiado em paredes de amargura. Muros altos que sobrepunham a luz do dia e o entregavam a uma existência penitente de dias que se repetiam sem qualquer outra coisa que não um existir pesaroso, vazio e sem ambição nenhuma. Os anos passaram e sucumbiu à passagem do tempo como se este fosse adubado em negrume que lhe toldou o passo vagaroso. Tornou-se velho. Nunca teve amigos e agora afundara ainda mais numa existência virada ao umbigo, ao seu próprio muro de lamentações que nunca chegavam a ser afirmação consciente da rebeldia libertadora de um “ai”. Apenas uma nuvem, sempre presente, augúrio desprovido de qualquer intenção que renunciasse ao sofrimento.
Deixara de usar meias porque não se conseguia dobrar o suficiente para as calçar e reduzira os movimentos ao indispensável para a sobrevivência que teimava em prolongar. Comia papas de aveia, bebia café e ganhara um cheiro a velho que se confundia com o cheiro da própria casa.
Ouviu a campainha com desconfiança e surpresa. Nunca abria a porta, mas desta vez o som estridente prolongava-se numa insistência que anunciava a teimosia entranhada de uma mula. Arrastou-se devagar e deu passagem aos serviços da segurança social que numa quarta feira chuvosa de Março o declararam irremediavelmente “pessoa dependente e incapaz de garantir o seu próprio bem-estar”. Teve vontade de os mandar à merda mas, ou porque não tinha forças ou porque se estava realmente a marimbar, aceitou resignado a visita de uma funcionária que viria todas as manhãs para o ajudar nas tarefas domésticas e “arejar o mofo instalado”.

Foi assim que a conhecera.  

04 maio, 2017

©Elliott Erwitt

PLAY Pēteris Vasks: White Scenery (Winter) 

As mães não sabem voar porque os pés são o sul e a terra o norte do íman. Por isso, são pesadas, nunca chegam longe. Nunca apanham os filhos no jogo do não-me-apanhas. Como são grandes, as mães não jogam às escondidas, em qualquer lugar os filhos descobrem-lhes as sombras.

As mães só sabem jogar à cabra-cega, sem venda ou olhos fechados. De olhos abertos já nada veem. Depois do jogo, calçam luvas para dar colo aos filhos e, quando o esvaziam, colocam-nas a arejar, pendurando o cheiro da pele no arame. 

As mães não tiram as cobras das cabeças dos filhos porque não sabem tocar flauta ou encantar.

Na hora do abraço pesam-no, em gramas, e dividem-no milimetricamente. O abraço é caro tem de ser doseado. 

As mães marcam a hora das necessidades dos filhos mas o amor, quando chega, é atrasado.

<--- vasleuqaR <---

12 abril, 2017

O Bairro do Amor 3

Como se acordasse de um sono profundo que sempre fora a sua vida. Divagava em reflexões profundas ao balcão da repartição de finanças e por mais do que uma vez deixou os utentes entregues a um monólogo inquisidor sobre terrenos e partilhas. Ou sobre o imposto que fora cobrado e todos esses assuntos que levam o cidadão comum a procurar a dita repartição em que Ermegildo emprega os dias.
Esses, os dias, foram passando. Poder-se-ia dizer que a clandestinidade revolucionária das carícias e afetos das tardes de sábado foram ganhando forma e conteúdo. Ermegildo aprendera a reconhecer a vizinha. A olhar devagar a mulher que subia descalça as escadas de madeira e que parava defronte da sua porta. Já não batia, limitava-se a esperar que Ermegildo rodasse o trinco, coisa que acontecia com uma precisão exagerada. Defeito de funcionário público, zeloso e intumescido na oportunidade que se lhe apresentava.

A linha com que se cose a vontade de cada um tem caprichos que nem sempre a razão antecipa. Numa tarde de sábado, inexplicavelmente e contrariando qualquer previsão, Herondina Assunção, esposa fiel e dedicada ao ensino do catecismo professo pela Santa Igreja Católica, foi tomada por uns calores que lhe fraquejaram as pernas e a fizeram quase desmaiar aos pés do Santíssimo. Regressou a casa. Mais cedo do que o normal e sem nunca imaginar a surpresa que a aguardava do outro lado da porta. Ermegildo viu a cara da mulher. Percebeu o esgar de dor que lhe atravessou a face e teve a perfeita noção que o mundo tal como o conhecera acabara de mudar irremediavelmente e para sempre. Herondina, retirou-se. Desceu apressada as escadas do prédio e durante dois dias ninguém soube por onde andou ou o que terá feito. Ao fim desses dois dias regressou a casa e nunca mais voltou a falar para o marido. Passaram semanas, meses e Herondina manteve a mesma expressão fria e distante até uma tarde em que Ermegildo regressou do trabalho e a encontrou morta caída no chão do quarto. Um AVC hemorrágico. Fulminante, segundo o médico, mas para Ermegildo um prego cravado na penitência que lhe caía sobre os ombros. Aquele era apenas o resultado dos seus actos, sabia-o bem. Herondina morrera com uma veia rebentada pelo assombro e repugnância entranhados pela descoberta de um final de tarde de sábado que agora parecia a Ermegildo tão distante. Aquele entusiasmo e alegria que sentia nos braços da vizinha eram como a receita de um prato que lhe provocava mais que tudo, um desconforto, uma sensação de aperto que não se apagava nunca. Mas é velho o ditado, se comeu a carne, que roa os ossos! E assim, depois do funeral de Herondina entregou-se ao silêncio. Como se ao prolongar o comportamento da mulher lhe prestasse uma última homenagem e penitenciasse o martírio que o sufocava por dentro. Tratou da reforma antecipada e passava agora os dias enfiado em casa sem que nunca ninguém se lembrasse dele. Nem mesmo a vizinha, cúmplice do desarranjo emocional que se instalava no primeiro andar à direita de quem sobe as escadas do prédio do Bairro do Amor. Essa, mudara-se pouco depois da descoberta inesperada de Herondina e emigrou para parte incerta.

Pedro Gonçalves

23 março, 2017



Se eu fosse poeta isto seria uma Elegia



O Julgamento Final (fragmento)
Miguel Ângelo
Capela Sistina, Vaticano, Roma

 
Os julgamentos finais não ocorrem apenas nas pinturas da Capela Sistina.

“As sociedades tornam-se modernas, sugeriu o filósofo Hegel, quando as notícias tomam o lugar da religião como nossa fonte central de orientação, a nossa pedra de toque da autoridade” (1).

Se as notícias assumem esta função religiosa, quem são hoje os novos profetas e seus acólitos? E quem assume o papel de fariseu, nesta nova modernidade? Os novos “Livros Sagrados”, serão eles os tabloides impressos à venda nos quiosques? Com versão digital e edição televisiva? E quem assume o papel de Inquisidor-Mor na defesa da nova “Palavra Sagrada”? Talvez jornalistas, magistrados, inspetores disto e daquilo, uns e outros e tudo misturado. Embora (a)pareça a cores, está tudo a preto e branco. Talvez na verdade, só a preto. Vazio. Como algumas cabeças. Tudo simples. Com a clareza de uma brincadeira pueril de “polícias e ladrões”: quem não é polícia só poderá ser ladrão. Óbvio, não é? As massas precisam de mensagens simples.

Bem-aventurados os sábios defensores da nova “Palavra Sagrada”. Ou antes, das Palavras Sagradas, pois amanhã a palavra pode ser diferente da de hoje. Mas isso pouco importa, desde que quem a profira sejam os mesmos Inquisidores. Haja espetáculo. E que ninguém ouse questionar, contestar ou sequer tentar alcançar pela compreensão racional os supremos desígnios dos novos Senhores! Ah, hereges! Sob o manto da autoridade será decretado, neste mundo, e de imediato, o Julgamento Final.

A inspiração vem da Rainha de Copas: “Cortem-lhe a cabeça! … Primeiro a sentença, depois a decisão do júri” (2). (Só faltou explicar a quem se inspira diariamente nesta máxima que isto era ironia.)

“Acredita nos que procuram a verdade. Desconfia dos que a encontram” dizia André Gide. Pois é. Mas as notícias trazem-nos hoje verdades absolutas. Até ao dia seguinte, apenas. E que fazer com as vítimas diárias dessas efémeras certezas? Convoca-se um inspetor que as contabiliza como “dano colateral”. Beatificado seja o inspetor!

Pois eu cá por mim, vou continuar a optar pela Bíblia: é que prefiro o “Cântico dos Cânticos”!

“Se o seu quotidiano lhe parece pobre, não o acuse, acuse-se a si, diga a si mesmo que não é poeta bastante para convocar as riquezas dele; pois, para o criador, não existe pobreza alguma, nem lugar pobre e indiferente” (3). Adoro esta pequena frase do notável livro “Cartas a um jovem poeta”. Mas é por não conseguir seguir este conselho de Rilke que não escrevo poesia. (Deixo essa nobre missão para as sábias poetas que partilham este blogue).

Assim, como não sou poeta isto não é uma Elegia. Este texto é apenas uma pobre, triste e amargurada lamentação.
 

(1) Alain de Botton, As notícias: um manual de utilização, Ed. D. Quixote, 2014
(2) Lewis Carrol, Alice no país das maravilhas, Publicações Europa-América, 1998
(3) Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta, Antígona, 2016

12 março, 2017


Prelúdio nº1 de Heitor Villa Lobos


Interpretação dedicada ao Mestre da Guitarra Professor Roberto Baptista

08 março, 2017

Escrever à maneira de uma mulher

Resultado de imagem para quadros famosos sobre a mulher
O beijo (pormenor). Gustav Klimt. 1907-1908


Mulheres,
urge
                 levarmos a
                            humanidade a
                                   encontrar-se...
                                            reinventar-se...
                                              elevar-se...
                                                         superar-se...!

05 março, 2017

palimpsesto [#2.1]

Acto Segundo (1 + 1)  
(Versão 2.1)  Intermezzo


[A música do segundo Acto Primeiro cessou. A cortina foi fechada. De um lado, o público estarrecido. Do outro, dois corpos que repousam esgotados. Ouve-se  PLAY Fausto  @ não se move. π arrasta-se, transpõe a cortina, ajoelhado, como quem reza.]

π: [com seriedade, em tom grave]

creio-nos em almas escancaradas,
de jangada que toma de assalto as ternuras e delícias que flutuam na desconjuntada periferia do tempo

como se ali tivessem morado sempre,
as ternuras e delícias,
revistas no tempo de sempre
em escassos cinco minutos (dos nossos)

mas não!
terão passado quatro  (ou teriam sido cinco mil?) unidades de tempo maior,
daquelas medidas pela dança da Terra à volta do Sol
     [sim, confirmei no Google a definição de um ano (dos homens)]

o tempo é-nos sempre tão confuso 
e a memória comum e a arqueologia dos dias estão guardadas na magia de um clique,
talvez à matéria das almas escancaradas não lhe assista factos tão perfeitamente inúteis

mas só podem ter sido quatro (ou teriam sido cinco mil?)
unidades de tempo maior, condensadas num minuto  (do nosso encontro)

preciso-nos em almas escancaradas de gigante,
sem garantir que o trajecto da nossa luz ao vazio se faça em porções de 1/299792458 de segundo ou em qualquer outra fracção

perfeitamente maiores, seremos, pois,
nos passos do nosso encontro
à razão de sermos próximos das coisas que não se tocam,
feitos em pormenores do reflexo das árvores concretas,
que flutuam e descansam nas águas do rio
na perfeita liberdade de ser-plano
                         (à tona do mundo de Edwin Abbott)

creio-nos em almas escancaradas,
tão claras e distintas de detalhes,
na complexidade que se esbate nas coisas planas e mágicas
em plena liberdade de existência

foge-nos o vício,
da morbidez,
         (daquela a que os homens se habituaram a querer viver)
e escolhemos a matéria etérea e fugaz para existir,
em almas escancaradas ao sabor e aroma do perfume das chuvas

esgueiramo-nos, sensíveis, aos toques ímpios na água 
                 (os que dissolvem a magia da revelação)
e somos de tal infinitas maneiras
que só o poema nos poderá eternizar.

sim, creio-nos em poesia! 

Público: [Em coro] sim, creio!

[
π transpõe, novamente, a cortina e junta-se a @.
 @, em posição flectida, tronco erguido a 90º, revela três rugas entre os olhos, manifestando no rosto expressão de zanga.]

π: [Encolhendo os ombros  e flectindo o braço, pelo cotovelo, ergue as palmas das mãos em simultâneo, viradas para @, formando um ângulo recto com o antebraço] Eu posso explicar!

Ouve-se, ao longe, PLAY  Fausto .

<--- vasleuqaR <---

19 fevereiro, 2017


A verdade é um Poliedro?


Variante de la tristesse, 1957
René Magritte
Kerry Stokes Collection, Perth

René Magritte pintou uma tela (Variante de la tristesse, 1957) que me parece ser extraordinariamente expressiva sobre a efemeridade da vida. A angústia, inquietação e perplexidade que está subjacente ao confronto com a morte é decisiva na forma como interpretamos e vivemos a vida. Entre o tempo (sempre curto) que medeia o nascimento e a morte, o homem, como ser social, estabelece os termos das relações consigo próprio e com os outros.
Em comunidades locais e de proximidade as relações sociais assentaram sempre na confiança. O livre-arbítrio coexiste com o respeito pela sociedade em que se vive. E aí nasce a importância da verdade.

Vem isto a propósito da novilíngua que nos últimos meses tem invadido os meios de comunicação e as redes sociais. Na sequência das eleições norte-americanas e de tudo o que lhe esteve associado (embora o fenómeno já fosse anterior) o dicionário Oxford elegeu “pós-verdade” como palavra do ano de 2016, considerando-a um adjetivo que faz referência a “circunstâncias em que os factos objetivos têm menos influência na formação de opinião pública do que os apelos emocionais e as opiniões pessoais”. E assim, legitimada pela nova “Academia” das redes sociais e da imprensa de pasquim, passámos a incluir também no léxico corrente as palavras pós-facto ou facto alternativo, as quais foram imediatamente apropriadas por responsáveis políticos para justificarem o seu ignóbil discurso.   

Em vez de apelidarem com veemência de “mentira” tudo o que aparece com a chancela de “pós-verdade” ou “facto-alternativo”, a norma politicamente correta e as elites do mundo dito desenvolvido pouco se indignam e importunam por pronunciar oximoros com a naturalidade e normalidade que só a ignorância e a imoralidade podem explicar. Provavelmente porque as palavras perderam o significado. E a vida parece que também.

Há mais de dois mil anos que muitos se debruçam sobre a verdade e como alcançá-la. Houve filósofos que com alegorias evidenciavam a importância de distinguir a verdade das aparências. Consensual sempre foi que uma impressão falsa da realidade não é mais do que uma aparência. Uma ideia, opinião ou simplesmente impressão exterior que resulta do julgamento feito sobre um objeto não é necessariamente a verdade. A aversão à mentira pareceu sempre ser o caminho para uma vida boa e a base da ética e da civilidade. A busca da verdade era uma qualidade natural para o homem que procurava a perfeição.
“O que é a verdade?” (1). Embora a pergunta de Pilatos dirigida a Jesus Cristo não tivesse obtido resposta, não consta que tal tenha constituído a causa para a anomia que assistimos.
Verdade, semelhança, presunção, suposição, fé, indício, mentira tratam-se hoje como sinónimos. A verdade já não interessa. As mentiras legitimam-se como se se tratasse de um ponto de vista. Tudo parece ser relativo. Cada um pode ter a sua (ou as suas) verdade (s) independentemente dos factos, que passaram a ser irrelevantes. Substituímos a racionalidade que conduz à verdade, pela subjetividade temperamental e pelo relativismo emotivo que seleciona os critérios de acordo com a pessoal conveniência.

Não está em causa a existência da mentira, o que é relevante atualmente, é que ninguém se importa que ela seja veiculada com naturalidade e indiferença. A crença inabalável que há vários séculos foi transferida para as ciências, iluminismo, positivismo, racionalismo, progressismo, materialismo (que sucessivamente foram substituindo a escatologia transcendente como novos dogmas) é a isto que nos conduzem?
A liberdade conduz a elementos positivos quando ligada a uma matriz ética. Hoje contudo, parece que todos desprezam a sociedade em que vivem, e portanto nenhuma ética se afigura necessária.

“Artigo I: Fica decretado que agora vale a verdade (….) Artigo V: O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa”(2). Como se sentiria hoje Thiago de Mello perante a atual realidade?!

Parece que num mural da Universidade do Porto alguém escreveu: “Queremos mentiras novas”. Possivelmente passámos a estar convencidos que para superar a realidade iníqua que temos, só a mentira seria alternativa. Na aldeia de meus avós havia a “palavra de honra”. Hoje parece que as palavras já não têm qualquer virtude. Vícios e virtudes: tudo parece ser relativo.
O país mais desenvolvido do mundo (EUA) que no último século pretendeu impor o seu “modelo” ao resto do mundo, dá-nos um exemplo de degenerescência moral que poucas comunidades no planeta parecem compreender.

A continuar assim, não será surpreendente que num futuro próximo, poucos compreendam a ironia incluída na literatura de Oscar Wilde (3):

John: Gwendolen, é uma coisa terrível para um homem descobrir de repente que toda a sua vida não disse senão a verdade. Podes perdoar-me?
Gwendolen: Posso. Pois sinto que com certeza hás-de mudar.

Deveria ser obrigatória a prescrição em grandes quantidades, de romances, poesia, teatro, música ou outras formas de criação artística a quem pretendesse assumir responsabilidades políticas. E algumas doses de História. Talvez ajudasse. Entre o nascimento e a morte, não pode ficar um vácuo de virtudes pessoais. A desorientação moral e o impulso do momento não se podem sobrepor à busca da verdade que oriente qualquer comunidade. A verdade, a sabedoria, a coragem, a humanidade, a justiça, são algumas das virtudes de sempre para superar quaisquer teorias amorais ideologicamente veiculadas. A verdade não é um poliedro.


(1)                Bíblia Sagrada | João 18:38
(2)                Thiago de Mello | Os Estatutos do Homem
(3)                Oscar Wilde |A importância de ser Earnest, in A importância de ser Earnest e outras peças | Relógio d’Água |Março 2003
 

15 fevereiro, 2017

Ciaccona BWV 1004

Ciaccona BWV 1004 - J. S. Bach

Gravado em casa, a 14 de Fevereiro de 2017.




12 fevereiro, 2017





 

Atitudes

Nada parece fazer sentido em si mesmo, mas em virtude da sua relação com alguma coisa. Isolar o pensamento humano significaria a redução absoluta ao absurdo, sobretudo pela sua limitada capacidade de apreensão da totalidade. Renegar a relação das partes com o todo é a criação de ilhas existenciais que são motores de produção de egoísmos e de pensamentos egocêntricos que em muito tem contribuído para uma actualidade universal.
A inversão deste exercício mental, e do seu alargamento da escala às dimensões da humanidade e da totalidade do tempo, implica desafios gigantes mas dentro da dimensão humana, por forma  a procurar o sentido nos seus próprios actos dentro da globalidade, ou seja, “não dar mais valor à queda de um império que ao nascimento de uma criança, nem mais peso às acções de um rei do que a um suspiro de amor” conforme afirma o historiador José Mattoso.
A pretensão da totalidade é um desafio à capacidade humana, e abarcar tal empresa poderá divergir tanto quanto a riqueza e diversidade da sua natureza. Estará de qualquer forma sempre dependente da atitude do próprio homem, pelo que, pela liberdade que possuo defendo a atitude contemplativa*. Esta atitude não pretende afirmar-se como ideia de passividade, de “irrealismo beatífico”  ou de uma qualquer procura transcendental. Procura antes uma observação atenta do real ou como afirma Alberto Caeiro “da espantosa realidade das coisas”.
Esta atitude procura estender o olhar até aos limites da história e do Universo com a pretensão de tudo envolver num único olhar. Esta ambição pela totalidade é pois a observação que procura captar todas as suas dimensões: não apenas as mensuráveis mas o que as coisas evocam ou simbolizam, não apenas o que a ciência pode classificar com as suas metodologias mas o que também pode ser captado pelo registo poético ou artístico.
Abrir o pensamento à totalidade é pois um desafio do homem à apreensão do real em todas as suas facetas e implica a sua vontade para disponibilizar recursos racionais mas também volitivos, o que significa afirmar que os sentidos do corpo e do espírito se devem “abrir” de tal modo ao real que lhe seja como que interiorizado e absorvido pelo próprio homem.
Esta atitude ou exercício é pois um ato de amor, que pretende a parte no Todo, o homem na Humanidade. 

 * Expressão retirada do autor José Mattoso no âmbito da Conferência realizada na Faculdade de Ciências da Universidade de Nova de Lisboa



08 fevereiro, 2017

Escrever à maneira de (várias) pessoas


Medley Pessoano*

O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar…

Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.


*compilação de versos dos poemas "O andaime" (Fernando Pessoa), "Tabacaria" (Álvaro de Campos) e "Guardador de Rebanhos" (Alberto Caeiro)

05 fevereiro, 2017

O Bairro do Amor 2

Ermegildo nunca fora homem de fé. Agora, ali estava, ajoelhado de mão dada com o remorso e com a angústia entranhados por dentro. Na verdade, de pouco lhe valeu o cheiro a incenso e os por “minha culpa, por minha tão grande culpa” das missas dominicais. Os seus encontros amorosos estavam cada vez mais refinados. Ao fim de algumas semanas recebia a vizinha com uma encenação que em nada tinha que ver com a timidez inicial.
“A senhora faça o favor de entrar.”
E a vizinha entrava. Sempre obediente e atenta aos pormenores cada vez mais requintados na exigência do vizinho.
“Faça o favor de dizer.”
E a vizinha fazia o favor. Dizia que vinha por este ou por aquele assunto sempre muito urgente e em falta de cumprimento. Ermegildo tornava-se sério, a repartição estava em hora de fecho, mas se quisesse aguardar na sala de espera, talvez fizesse algo por ela. Encaminhava-a para o sofá da sala e dizia-lhe para se sentar. Uma vez sentada, a vizinha, trocava a perna e inclinava-se de forma que a coxa fosse mais que uma promessa mas uma certeza inabalável perante o olhar inquisidor de Ermegildo que se sentava na mesa oposta para onde tinha trazido a sua velha máquina de escrever.
Começava a datilografar lentamente com os olhos cravados no papel. Depois, aos poucos, e com movimentos quase imperceptíveis, olhava a vizinha que se lhe apresentava defronte, mas com um olhar tão sério que quem visse aqueles dois na sala de estar do primeiro andar do prédio do Bairro do Amor acreditaria que estavam ali o funcionário e a cidadã, ambos em suas funções perfeitamente legítimas. Ermegildo prolongava a datilografia do ofício em notas melosas e cadenciadas enquanto a vizinha, ao fim de algum tempo, se começava a despir. Sentada e sem qualquer intenção reveladora no gesto que fizesse antecipar o movimento seguinte. Poder-se-ia dizer que o fazia como se não estivesse mais ninguém na sala, como se este fosse um ritual de um passado longínquo que reincidia naquele fim de tarde. Ermegildo observava a nudez da vizinha e emudecia o tremor que lhe atravessava a garganta. Ao mesmo tempo interrogava-se sobre si mesmo, sobre a vida toda que o levara até àquele momento. Afinal também era isto. Como se descobrisse uma palete de cores que lhe tresmalhavam a certeza do preto e branco com que regia a vontade e a noção de certo e errado. Foi num sábado à tarde que percebeu que estava irremediavelmente apaixonado. Não pela vizinha, que aguardava nua da cintura para cima, mas pela possibilidade que aprendera a reconhecer como um recomeço. Cada decisão que tomava sabia-lhe agora a uma oportunidade com que nunca antes sonhara.

Pedro Gonçalves
com John Grant, marz

04 fevereiro, 2017

palimpsesto [#2.1]


Acto Primeiro (Versão 2.1)
[Os dois corpos celestes permanecem deitados em decúbito ventral. Nada se moveu. A Terra continua suspensa, mas a tocar o chão, prostrada, também, como os corpos. A esfera achatada que a compõe aparenta ter perdido volume, aparenta mais achatada que nunca, mantém o seu formato frouxamente. É visível, ao longe, a tabuleta improvisada que a identifica.
 <---- TERRA
Essa tabuleta é útil a quem passa. Os dois corpos celestes, adormecidos, balbuciam alternadamente, materializando os frutos de pesadelos, em tom crescente]

[quase inaudivelmente]:
@: Aos 64 anos, Bruna Lombardi, de biquíni, reúne elogios.
π: Trump proíbe entrada de muçulmanos nos EUA.

[entre-dentes e vagarosamente] 
@: Após separação de Angelina Jolie, Brad Pitt terá engravidado Kate Hudson.
π: Cartazes em manifestação em Chicago anotam: "Rise up".

[sussurrando] 
@: Salvem a Melania.
π: Rússia financia campanha de Le Pen.

[ciciando]
@: Casa Branca enganou-se a escrever Theresa May e esta ficou com nome de atriz porno.
π: Madeleine Albright admite registar-se como muçulmana.

[aumentando o volume e o ritmo mas ainda baixinho e vagaroso]
π: Hitler eleito democraticamente.
@: Melania (o)usada na capa da Vanity Fair mexicana.

π: [conservando o volume mas em ritmo crescente, denunciador de nervosismo, ainda deitado, mas por pouco tempo] Impressora 3D imprime pele humana, 100% funcional. 
Cientistas criam embrião híbrido metade porco, metade humano.
"1984" de Orwell esgota no Amazon.
Impressora 3D imprime pele humana, 100% funcional. 
Cientistas criam embrião híbrido metade porco, metade humano.
"1984" de Orwell esgota no Amazon.
repeat
repeat

@: [em volume idêntico mas tom conformado e suspirante] Valter Hugo Mãe não matou o Pai Natal mas disse umas verdades sobre os orifícios da tia de alguém.

[π levanta-se energicamente, em sobressalto e em volume e ritmo crescente, nervoso]

π: "Todas as criaturas que caminham sobre duas pernas são nossas inimigas"*
"Todos os hábitos do Homem são perversos"* 
"Nenhum animal usará roupas"* 
"E vou poder continuar a usar laçarotes na crina?"*
[gesticulando com um movimento de rotação da cabeça em torno do pescoço, 90º e -90º, 90º e -90ºe 90º e -90º]
Não, não, não! Não vamos simplificar os 7 mandamentos! 
 
@: [Ainda deitada, em tom suspirante, tapando os ouvidos com cada uma das mãos, respectivamente]
Vintage, Gourmet
Vintage, Gourmet
Vintage, Gourmet

π: [Abanando a cabeça lentamente, olhos fixos no chão, em tom de resignação]
"Quatro patas bom, duas pernas mau."*

π: [Ganhando fôlego, timidamente] Spiegelman retrata os nazis como gatos, os judeus como ratos, os polacos como porcos e os americanos como cães. Todos são terrivelmente humanos"**

@: [Tirando as mãos e dando bofetada a si própria] Rússia aprova "lei da bofetada".

π: [Em ritmo novamente crescente] Porque maior do que toda a vergonha da guerra é a vergonha de os homens já nada quererem saber dela, suportando que haja guerra, mas não que a tenha havido.***

@: [Abrindo os olhos lentamente]Pedro Chagas Freitas.

π:[Gritando] "(17) "Vem! Vou mostrar-te como será julgada a grande prostituta, que está sentada à beira de muitas águas. Os reis da terra prostituíram-se com ela. Os habitantes da terra ficaram bêbados com o vinho da sua prostituição" (20) O fim dos tempos já começou- Depois disto vi um Anjo descer o céu. (...) Vi então tronos, e os que se sentaram nos tronos receberam o poder de julgar."****  

@: [Acorda sobressaltada, senta-se ortogonalmente à superfície e grita] Um dia vai arder tudo. Tudo o que vês, irá arder um dia.

π: [No mesmo tom aflito] Escathon, Escathon...

@:[A chorar e soluçar] Um dia irá arder tudo!

[Os corpos celestes voltam a cair no chão, exaustos, como corpos cilíndricos e invertebrados. Após a queda segue-se um momento de silêncio interrompido pelo movimento enérgico de @, que se levanta a correr. π continua imóvel e deitado.]

@: A música. A música. A música. Espera, a música. O nosso produtor de som abandonou-nos. Espera.

[@ mexe no telemóvel e faz soar as colunas. Coloca um gancho no cachaço de π e no seu. Enquanto ouvem a música PLAY
Kraftwerk | News, os dois corpos celestes são elevados de mão dada, ficam suspensos. Todo o cenário escurece. Há leves luzes que imitam estrelas. Há espelhos que multiplicam essas luzes de estrelas. E outros espelhos que multiplicam as imagens dos espelhos. Há difusão de imagens. Dificuldade em identificar objectos. Os nossos corpos celestes são luzes incapazes de gerar imagens nos espelhos. Observam que a Terra também não reproduz imagem no jogo de espelhos. Olham-na com tristeza. Choram e chove. Há um espelho no chão. Confundem-se os pingos da chuva, reproduzidos pelos espelhos em movimentos ascendentes e descendentes, como se desaguassem numa nascente. Princípio e fim unidos. Os corpos continuam a subir muito lentamente e só param quando alcançam as tabuletas que os identificam
 <---- π       <---- @   
Continuam a olhar para a Terra]

@: Um dia vai arder tudo.
π: Como eu gostava que concordássemos em discordar! 
@: Parecem formigas.
π: As formigas não destroem os seus próprios carreiros.

[Observam novamente a Terra, em silêncio]

π: [retoma conversa]Os sobreviventes do "11 de Setembro", os que estavam dentro do edifício não se aperceberam do que se passava, ao contrário do resto do mundo.
@: "Há que sair da ilha para ver a ilha".
π:[vira-se surpreendido] Saramago?
@: Hoje já não seria assim. Nas redes sociais apareceria, sordidamente, cada pormenor, na perspectiva de cada vítima.
π: Houvesse rede.

π: [em tom profundo-cavernoso]"Vi então tronos, e os que se sentaram nos tronos receberam o poder de julgar."****
@: Um dia será assim.
π: Assim, como?
@: Uma espécie de purgatório digital.
π: E não precisaremos de ninguém para nos julgar - apunhalados pela nossa consciência, qual Samurai.
@: Olha o talhante.
π: Que fará a entrar no W.C. público?
@: Não quero imaginar. Mas estou contente por ser vegetariana.
π: Deves pensar que o Miso é mais higiénico.
@: [dirigindo olhar sedutor] Tu sabes, em questões de comida, prezo a higiene acima de tudo.
π: Olha o fanático do Benfica a contornar o Café Central, na sua lambreta icónica.
@: E o espalhador de folhas? Haverá profissão mais inútil?
π: Conheço uma.
@: Eu também. A tua.
π: Nunca serei capaz de te dar poesia, pois não?
@: Sabes o que penso da poesia. E não faço questão de mudar de opinião.
π: Sempre imaginei que o amor nos salvasse.
@: O amor? Achas? Achas mesmo? Inocência! O amor é a forma de egoísmo mais pura que conheço. Preferimos amar a ser amados. Somos felizes quando nos sabemos capazes de amar. E não é para dar a mão a quem amamos, mas para conhecermos os limites da nossa. 
π: Então por que sobrevivemos?
@: Porque tudo o que nos garante a sobrevivência dá-nos prazer: comer e foder.
π: E sobreviveremos?
@: Não sei, passamos a vida a contabilizar calorias e doenças venéreas.
π: Talvez sinta algum medo.
@: O medo salva-nos.
π: E tolda-nos. Inibe-nos. Não nos deixa sermos o que gostaríamos de ser.
@:  Na maioria das vezes, é uma bênção. Se cada ser humano fosse na medida em que gostaria de ser, verdadeiramente, talvez já não existisse mundo.
π: A maldição do homem é o que o distingue dos outros animais.
@: E ainda dizem que "nada é mais bonito que a inteligência"*****.
π: Crítica da razão Pura?
@: Não! Lidl- a campanha do creme Cien Aqua - "para mulheres mais do que bonitas".
π: O conhecimento é, cada vez mais, um lugar comum.
@: O que é verdadeiro acaba em clichet porque funciona.
π: Até não haver matéria de clichet que suporte os milhões. Irónica democracia. Não nos resta mais nada em que acreditar?
@: Eu acredito no Head & Shoulders e no Agroal, ajudam-me na psoríase.
π: Desculpa se te acordei, há pouco.
@: Eu nunca acordo- durmo desde que nasci.
π: E quando pretendes acordar?
@: Hoje não, com toda a certeza. Hoje é mau dia para acordar.
π: Por teres medo?
@: Claro. Medo, medo, medo é tudo o que tenho.
π: Não acredito. Além disso, o teu medo não é o meu medo.
@: Não basta haver nomes a mais ainda queres que sejam ambíguos?
π: Os conceitos nunca serão a mais. Aumentam os conceitos, aumenta a liberdade. 
@: E, no entanto, criá-los é dar oportunidade de nomear a estupidez, a inutilidade, a futilidade.
π: Nós somos diferentes. Não falamos a mesma língua.
@: Mas compreendemo-nos.
π: Às vezes tenho as minhas dúvidas.
@: Experimenta. 

[π faz um pequeno compasso de espera e ataca]
π: Jogos de linguagem.
@: "Cada cabeça sua sentença".
π: Cinética filosófica.
@: "Onde vai um português vão dois ou três".
π: Imperativo categórico.
@: "Quem tem cu tem medo" 
π: Imanentização escatológica.
@: "A esperança é a última a morrer".

[π, ainda suspenso e cintilante, olha para a Terra. A Terra vai-se enchendo de luz. Aparenta mais volume mas pode ser uma mera ilusão óptica. Os dois corpos suspensos bamboleiam em direcção à Terra, imitando o movimento de voo. Espetam as suas tabuletas na Terra, pela seguinte ordem: 
  <---- TERRA     <---- π     <---- @   
Nenhuma das tabuletas gera imagem nos espelhos. Os corpos e a Terra também não. Deitam-se sobre ela em decúbito ventral, acompanhando a sua forma esférica-informe, reservando aos braços a posição lassa que lhes é habitual.]  

π: Achas que ainda há esperança?
@: Para nós? Que importa? Somos personagens de ficção.
π: [ri desalmadamente] Nós? ahahahah? O quê?
@: [séria] Sim. Há quem queira fazer de nós super-heróis da BD.
π: Tipo Dog Mendonça e Pizzaboy?
@: Eu disse-te que não estávamos sozinhos.
π: Assusta-te?
@: Sermos fruto da imaginação ou heróis em cuecas?
π: Não estarmos sozinhos.
@: Se formos fruto da imaginação, acabamos onde começamos e começamos onde acabamos. Ou não achaste estranho o espelho não reproduzir a tua imagem?
π: É por isso que este Acto continua a ser o Primeiro?
@: Não. Isso é um capricho matemático! Tal como o Nautilus Marinho e os coelhos, obedecemos à sucessão de Fibonacci. 

[Os dois corpos viram-se lentamente, sincronamente, posicionam-se em decúbito dorsal. Observam as estrelas e as imagens das estrelas. E as imagens das imagens. Até que adormecem, balbuciando]
  
π: Terra... Espelho... Ausência de imagem... Fruto da imaginação?... Terra?
 
[Ao longe ouve-se  PLAY Nick Cave& The Bad Seeds | Magneto
E o mistério não ficou desfeito: terá o produtor de som voltado a tempo do fim do segundo Acto Primeiro?]
<--- vasleuqaR <---
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* George Orwell | A quinta dos animais | Antígona | 2013
** Revisão crítica de Maus de Art Spiegelman in The Times
***Karl Kraus | Os últimos dias da humanidade | Antígona | 2003
**** Bíblia Sagrada
***** Campanha publicitária do Lidl

NOTA: Neste texto, qualquer semelhança com factos verídicos não é pura coincidência.