23 março, 2017



Se eu fosse poeta isto seria uma Elegia



O Julgamento Final (fragmento)
Miguel Ângelo
Capela Sistina, Vaticano, Roma

 
Os julgamentos finais não ocorrem apenas nas pinturas da Capela Sistina.

“As sociedades tornam-se modernas, sugeriu o filósofo Hegel, quando as notícias tomam o lugar da religião como nossa fonte central de orientação, a nossa pedra de toque da autoridade” (1).

Se as notícias assumem esta função religiosa, quem são hoje os novos profetas e seus acólitos? E quem assume o papel de fariseu, nesta nova modernidade? Os novos “Livros Sagrados”, serão eles os tabloides impressos à venda nos quiosques? Com versão digital e edição televisiva? E quem assume o papel de Inquisidor-Mor na defesa da nova “Palavra Sagrada”? Talvez jornalistas, magistrados, inspetores disto e daquilo, uns e outros e tudo misturado. Embora (a)pareça a cores, está tudo a preto e branco. Talvez na verdade, só a preto. Vazio. Como algumas cabeças. Tudo simples. Com a clareza de uma brincadeira pueril de “polícias e ladrões”: quem não é polícia só poderá ser ladrão. Óbvio, não é? As massas precisam de mensagens simples.

Bem-aventurados os sábios defensores da nova “Palavra Sagrada”. Ou antes, das Palavras Sagradas, pois amanhã a palavra pode ser diferente da de hoje. Mas isso pouco importa, desde que quem a profira sejam os mesmos Inquisidores. Haja espetáculo. E que ninguém ouse questionar, contestar ou sequer tentar alcançar pela compreensão racional os supremos desígnios dos novos Senhores! Ah, hereges! Sob o manto da autoridade será decretado, neste mundo, e de imediato, o Julgamento Final.

A inspiração vem da Rainha de Copas: “Cortem-lhe a cabeça! … Primeiro a sentença, depois a decisão do júri” (2). (Só faltou explicar a quem se inspira diariamente nesta máxima que isto era ironia.)

“Acredita nos que procuram a verdade. Desconfia dos que a encontram” dizia André Gide. Pois é. Mas as notícias trazem-nos hoje verdades absolutas. Até ao dia seguinte, apenas. E que fazer com as vítimas diárias dessas efémeras certezas? Convoca-se um inspetor que as contabiliza como “dano colateral”. Beatificado seja o inspetor!

Pois eu cá por mim, vou continuar a optar pela Bíblia: é que prefiro o “Cântico dos Cânticos”!

“Se o seu quotidiano lhe parece pobre, não o acuse, acuse-se a si, diga a si mesmo que não é poeta bastante para convocar as riquezas dele; pois, para o criador, não existe pobreza alguma, nem lugar pobre e indiferente” (3). Adoro esta pequena frase do notável livro “Cartas a um jovem poeta”. Mas é por não conseguir seguir este conselho de Rilke que não escrevo poesia. (Deixo essa nobre missão para as sábias poetas que partilham este blogue).

Assim, como não sou poeta isto não é uma Elegia. Este texto é apenas uma pobre, triste e amargurada lamentação.
 

(1) Alain de Botton, As notícias: um manual de utilização, Ed. D. Quixote, 2014
(2) Lewis Carrol, Alice no país das maravilhas, Publicações Europa-América, 1998
(3) Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta, Antígona, 2016

12 março, 2017


Prelúdio nº1 de Heitor Villa Lobos


Interpretação dedicada ao Mestre da Guitarra Professor Roberto Baptista

08 março, 2017

Escrever à maneira de uma mulher

Resultado de imagem para quadros famosos sobre a mulher
O beijo (pormenor). Gustav Klimt. 1907-1908


Mulheres,
urge
                 levarmos a
                            humanidade a
                                   encontrar-se...
                                            reinventar-se...
                                              elevar-se...
                                                         superar-se...!

05 março, 2017

palimpsesto [#2.1]

Acto Segundo (1 + 1)  
(Versão 2.1)  Intermezzo


[A música do segundo Acto Primeiro cessou. A cortina foi fechada. De um lado, o público estarrecido. Do outro, dois corpos que repousam esgotados. Ouve-se  PLAY Fausto  @ não se move. π arrasta-se, transpõe a cortina, ajoelhado, como quem reza.]

π: [com seriedade, em tom grave]

creio-nos em almas escancaradas,
de jangada que toma de assalto as ternuras e delícias que flutuam na desconjuntada periferia do tempo

como se ali tivessem morado sempre,
as ternuras e delícias,
revistas no tempo de sempre
em escassos cinco minutos (dos nossos)

mas não!
terão passado quatro  (ou teriam sido cinco mil?) unidades de tempo maior,
daquelas medidas pela dança da Terra à volta do Sol
     [sim, confirmei no Google a definição de um ano (dos homens)]

o tempo é-nos sempre tão confuso 
e a memória comum e a arqueologia dos dias estão guardadas na magia de um clique,
talvez à matéria das almas escancaradas não lhe assista factos tão perfeitamente inúteis

mas só podem ter sido quatro (ou teriam sido cinco mil?)
unidades de tempo maior, condensadas num minuto  (do nosso encontro)

preciso-nos em almas escancaradas de gigante,
sem garantir que o trajecto da nossa luz ao vazio se faça em porções de 1/299792458 de segundo ou em qualquer outra fracção

perfeitamente maiores, seremos, pois,
nos passos do nosso encontro
à razão de sermos próximos das coisas que não se tocam,
feitos em pormenores do reflexo das árvores concretas,
que flutuam e descansam nas águas do rio
na perfeita liberdade de ser-plano
                         (à tona do mundo de Edwin Abbott)

creio-nos em almas escancaradas,
tão claras e distintas de detalhes,
na complexidade que se esbate nas coisas planas e mágicas
em plena liberdade de existência

foge-nos o vício,
da morbidez,
         (daquela a que os homens se habituaram a querer viver)
e escolhemos a matéria etérea e fugaz para existir,
em almas escancaradas ao sabor e aroma do perfume das chuvas

esgueiramo-nos, sensíveis, aos toques ímpios na água 
                 (os que dissolvem a magia da revelação)
e somos de tal infinitas maneiras
que só o poema nos poderá eternizar.

sim, creio-nos em poesia! 

Público: [Em coro] sim, creio!

[
π transpõe, novamente, a cortina e junta-se a @.
 @, em posição flectida, tronco erguido a 90º, revela três rugas entre os olhos, manifestando no rosto expressão de zanga.]

π: [Encolhendo os ombros  e flectindo o braço, pelo cotovelo, ergue as palmas das mãos em simultâneo, viradas para @, formando um ângulo recto com o antebraço] Eu posso explicar!

Ouve-se, ao longe, PLAY  Fausto .

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