A verdade é um Poliedro?
Variante de la tristesse, 1957
René Magritte
Kerry Stokes Collection, Perth
René Magritte
Kerry Stokes Collection, Perth
René Magritte pintou uma tela (Variante de la tristesse, 1957) que me
parece ser extraordinariamente expressiva sobre a efemeridade da vida. A angústia,
inquietação e perplexidade que está subjacente ao confronto com a morte é
decisiva na forma como interpretamos e vivemos a vida. Entre o tempo (sempre
curto) que medeia o nascimento e a morte, o homem, como ser social, estabelece
os termos das relações consigo próprio e com os outros.
Em comunidades locais e de
proximidade as relações sociais assentaram sempre na confiança. O
livre-arbítrio coexiste com o respeito pela sociedade em que se vive. E aí
nasce a importância da verdade.
Vem isto a propósito da
novilíngua que nos últimos meses tem invadido os meios de comunicação e as
redes sociais. Na sequência das eleições norte-americanas e de tudo o que lhe
esteve associado (embora o fenómeno já fosse anterior) o dicionário Oxford elegeu
“pós-verdade” como palavra do ano de 2016, considerando-a um adjetivo que faz
referência a “circunstâncias em que os factos objetivos têm menos influência na
formação de opinião pública do que os apelos emocionais e as opiniões pessoais”.
E assim, legitimada pela nova “Academia” das redes sociais e da imprensa de
pasquim, passámos a incluir também no léxico corrente as palavras pós-facto ou facto alternativo, as quais foram imediatamente apropriadas por
responsáveis políticos para justificarem
o seu ignóbil discurso.
Em vez de apelidarem com
veemência de “mentira” tudo o que aparece com a chancela de “pós-verdade” ou
“facto-alternativo”, a norma politicamente correta e as elites do mundo dito
desenvolvido pouco se indignam e importunam por pronunciar oximoros com a naturalidade
e normalidade que só a ignorância e a imoralidade podem explicar. Provavelmente
porque as palavras perderam o significado. E a vida parece que também.
Há mais de dois mil anos que muitos
se debruçam sobre a verdade e como
alcançá-la. Houve filósofos que com alegorias evidenciavam a importância de
distinguir a verdade das aparências. Consensual sempre foi que uma impressão
falsa da realidade não é mais do que uma aparência. Uma ideia, opinião ou
simplesmente impressão exterior que resulta do julgamento feito sobre um objeto
não é necessariamente a verdade. A aversão à mentira pareceu sempre ser o
caminho para uma vida boa e a base da ética e da civilidade. A busca da verdade
era uma qualidade natural para o homem que procurava a perfeição.
“O que é a verdade?” (1).
Embora a pergunta de Pilatos dirigida a Jesus Cristo não tivesse obtido resposta,
não consta que tal tenha constituído a causa para a anomia que assistimos.
Verdade, semelhança, presunção, suposição,
fé, indício, mentira tratam-se hoje como sinónimos. A verdade já não interessa.
As mentiras legitimam-se como se se tratasse de um ponto de vista. Tudo parece
ser relativo. Cada um pode ter a sua (ou as suas) verdade (s) independentemente
dos factos, que passaram a ser irrelevantes. Substituímos a racionalidade que
conduz à verdade, pela subjetividade temperamental e pelo relativismo emotivo
que seleciona os critérios de acordo com a pessoal conveniência.
Não está em causa a existência da
mentira, o que é relevante atualmente, é que ninguém se importa que ela seja
veiculada com naturalidade e indiferença. A crença inabalável que há vários
séculos foi transferida para as ciências, iluminismo, positivismo,
racionalismo, progressismo, materialismo (que sucessivamente foram substituindo
a escatologia transcendente como novos dogmas) é a isto que nos conduzem?
A liberdade conduz a elementos
positivos quando ligada a uma matriz ética. Hoje contudo, parece que todos
desprezam a sociedade em que vivem, e portanto nenhuma ética se afigura
necessária.
“Artigo I: Fica decretado que
agora vale a verdade (….) Artigo V: O homem se sentará à mesa com seu olhar
limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa”(2).
Como se sentiria hoje Thiago de Mello perante a atual realidade?!
Parece que num mural da
Universidade do Porto alguém escreveu: “Queremos mentiras novas”. Possivelmente
passámos a estar convencidos que para superar a realidade iníqua que temos, só
a mentira seria alternativa. Na aldeia de meus avós havia a “palavra de honra”.
Hoje parece que as palavras já não têm qualquer virtude. Vícios e virtudes:
tudo parece ser relativo.
O país mais desenvolvido do mundo
(EUA) que no último século pretendeu impor o seu “modelo” ao resto do mundo,
dá-nos um exemplo de degenerescência moral que poucas comunidades no planeta
parecem compreender.
A continuar assim, não será
surpreendente que num futuro próximo, poucos compreendam a ironia incluída na
literatura de Oscar Wilde (3):
John: Gwendolen, é uma coisa terrível
para um homem descobrir de repente que toda a sua vida não disse senão a
verdade. Podes perdoar-me?
Gwendolen: Posso. Pois sinto que com
certeza hás-de mudar.
(1)
Bíblia Sagrada | João 18:38
(2)
Thiago de Mello | Os Estatutos do Homem
(3)
Oscar Wilde |A importância de ser Earnest, in A importância de ser Earnest e outras peças | Relógio d’Água |Março
2003