29 janeiro, 2017
19 janeiro, 2017
O Grito
Edvard Munch
National Gallery Norway
Gritamos quando a realidade nos
interpela de forma intensa. Deixamos de gritar quando, mesmo instados a
fazê-lo, nos faltam as forças, estamos anestesiados ou ficámos empedernecidos.
Economia. Não era por aqui que
tinha planeado começar, mas não me resta alternativa. Se concordo com Bachelard
quando diz que “aquilo que se vê não se compara com aquilo que se imagina”, julgo,
contudo, que dificilmente a imaginação humana poderia considerar a realidade
que pretendo comentar. Todos os anos em janeiro, a organização
não-governamental britânica OXFAM publica relatório sobre repartição da riqueza
no mundo. E foi o que aconteceu no início desta semana com o relatório “An economy for the 99%”.
As conclusões são estarrecedoras:
1. Em 2016, 8 pessoas no
mundo detêm tanta riqueza como 50% da população mundial mais pobre. No
relatório sobre 2015, eram 62 pessoas, e em 2010 eram 388 pessoas que
concentravam riqueza equivalente às 50% mais pobres;
2. Desde 2015 (mais cedo do que
se previa) que 1% da população mais rica detém mais riqueza que os restantes
99%;
3. A população 10% mais
rica detém 89% da riqueza mundial;
4. No relatório de 2015 (“An economy for the 1%”), refere-se que desde
2000, 50% da população mundial mais pobre apenas recebe 1% do
acréscimo global de riqueza que ocorre no período.
Os detalhes e estatísticas
poderiam continuar, mas já chegam estes números indignos. As conclusões do
relatório de novembro do Crédit Suisse (“Global Wealth Report 2016”) apontavam no mesmo sentido.
Os recursos da nossa terra comum
não podem ser alocados de forma tão ineficiente e iníqua. A economia tem de
estar ao serviço do homem. A primazia do homem não pode nunca ser ignorada.
Não nos podemos resignar a um
funcionamento global da economia que motive diferenças tão assinaláveis e que
constituem atentado à dignidade humana. Segundo Catherine Denny, um terço da
população mundial vive pior do que as vacas na Europa que recebem, em média, 2
euros por dia em subsídios.
A ausência de soluções terá consequências
desastrosas. O regresso do populismo, o descrédito dos actores políticos, a
aversão ao estrangeiro, o medo transformado em normalidade, a tentativa de
personificação do mal, a guerra, são consequências e não a causa de um problema
maior cuja origem está numa desigualdade inédita (mesmo admitindo o elevado
número de pessoas que têm saído da pobreza extrema).
Não conheço as soluções mas algo
tem de ser feito. Tem de haver solução. Há sempre solução. Se o homem vai à lua
e se consegue descodificar o genoma humano, tem inteligência e criatividade
para construir soluções, sempre no respeito da dignidade e da natural liberdade
humana. Assim o queira fazer. E por favor, que se coloque este problema no
debate central e deixem de nos inundar e anestesiar com falsos problemas.
Não nos podemos empedernecer ao
ponto de deixar de gritar. Não nos podemos resignar. Entre tanto recurso
disponível, é fundamental que entretanto se faça algo. Para que não se cumpram
os versos de Luis Filipe Castro Mendes:
“Nós vivemos da misericórdia dos
mercados.
Não fazemos falta.
O capital regula-se a si próprio e as
leis
são meras consequências lógicas dessa regulação,
tão sublime que alguns vêem nela o dedo de Deus.
Enganam-se.
são meras consequências lógicas dessa regulação,
tão sublime que alguns vêem nela o dedo de Deus.
Enganam-se.
Os mercados são simultaneamente o criador
e a própria criação.
Nós é que não fazemos falta” (*)
Paulo
Reis, in KZ
(*) A misericórdia dos mercados, in A Misericórdia dos Mercados, ed.
Assírio & Alvim, 2014
15 janeiro, 2017
O Bairro do Amor - Ilustração
Nota:
Sendo amante de BD, tenho grande admiração por autores como Frank Miller, Warren Ellis, Enki Bilal, entre outros! A arte gráfica é simplesmente genial! Humildemente,
no seguimento das minhas recentes incursões pelo desenho, deixo aqui uma sugestão para o Bairro do Amor da autoria do meu amigo Pedro Gonçalves!
11 janeiro, 2017
Reflexos
Reflexos
As águas do lago pareciam agora mais calmas após o
lançamento de várias pedras. As
reminiscências foram desaparecendo ao mesmo tempo que, no lugar das águas
agitadas, começou a surgir a face como reflexo de si próprio. A clareza do
reflexo assustou-o. A nitidez com que agora se via refletido mais parecia estar
frente a um espelho.
Onde estaria
o original?, questionou-se.
A confusão surgia-lhe na mente pelo que mexeu os
lábios para melhor perceber, quem seria a origem e quem seria o reflexo, quem seria
o criador e quem seria o criado.
... alguma tranquilidade surgiu após uns segundos de
inquietação, quando compreendeu que a imagem obedece à origem, que ainda existe
controlo sobre a sua própria aparência.
De súbito, sente um frio que estala pelo corpo, quando
surge no seu pensamento a possibilidade de ele próprio ser aparência de algo
que não vê, ser uma existência de uma essência escondida. Da mesma maneira que
poderia comprovar a existência do reflexo,
porque não ser ele próprio reflexo de outra coisa qualquer?
Provavelmente
não serei, pensou.
Certamente não seria, mas aquela ameaça continuava bem
viva na sua cabeça. Parecia tudo confuso, e este homem tinha habitualmente os
pés bem assentes, pelo que, apenas a confusão podia influenciar o raciocínio e
deturpar a sua razão. Afinal, ainda tinha controlo sobre os seus movimentos e domínio
sobre as suas expressões faciais, razão essa aparentemente suficiente para
sentir uma enorme sensação de poder sobre si próprio.
Surgiu o vento e com ele algumas folhas a caírem sobre
a água do lago. O homem não resistiu em tocar com os dedos na água fria. Ao
mesmo tempo que se arrepiava, sentia dentro de si um outro tipo de frio.
Assustou-se. Olhou em volta e compreendeu que a face triste ou alegre, estava
mais vezes dependente do exterior do que dele próprio, a própria expressão
facial era reflexo de algo alheio. Onde estaria agora o seu poder de controlo?
Cerrou os punhos, afirmou em voz bem alta e com alguma irritação:
Mas eu
respiro porque Eu quero! Eu ainda mando em mim!
Após o grito de desespero, respirou profundamente como
se demonstrasse a si próprio o argumento que proferia...
e veio a calma e o silêncio. Um silêncio tão profundo
que nem o vento se ouvia. A água do lago pareceu render-se ao seu desespero e
permaneceu serena ao mesmo tempo que refletia agora as imagens envolventes como
uma pintura se tratasse... um silêncio tão profundo que apenas permitia ouvir
ele próprio... até ouvir apenas o seu ritmo cardíaco. O coração, esse batia sem
que ninguém mandasse! E o homem compreendeu que o seu próprio motor agia sem a
sua ordem. Percebeu que a sua própria condição não carecia da sua vontade.
Olhou novamente o lago e resignou-se ao silêncio e à
face refletida na água.
08 janeiro, 2017
Escrever poesia à maneira de uma Pessoa – Parte I
In corde*
Sabia de cor
O teu negro cor**…
O teu triste fado
No corpo timbrado
De atroz dor sentida…
Sem cor, sem sabor,
Sem humana vida!
Vejo-te e revejo-te
In corde et ex corde***.
No passado fomos sós
Atados aos mesmos nós
De culpa sombria e vil…
Ó Vingança crua e fria,
A mim retornas servil!
Encontros e desencontros,
Vários e errantes caminhos…
Um desencanto comigo
No coração inimigo…
Encruzilhada sem calma…
Seguimos desencontrados,
Estóicos escravos d’ alma…
Ah, poder eu desatar
Os nós cegos que nos unem!
Veias, artérias, sangue,
Corpos cegos de amar,
A mim regressas sombrio!
Saliva, sabor, suor,
Forte cor distante e frio!
Ex corde****,
β, 07.01.17
* Ablativo singular do nome latino cor, cordis: “no coração”.
** Nominativo singular do nome latino cor, cordis:
“coração”.
*** “Dentro do coração e fora do coração”.
**** Expressão latina empregada no fecho de cartas
dirigidas a pessoas queridas.
04 janeiro, 2017
palimpsesto [#2.1]
Acto Primeiro (Versão 2.1)
|
[dois corpos celestes em decúbito
dorsal, naturalmente arqueados por esfera que simula o planeta Terra, suspensa dois
metros acima do solo; braços afastados do tronco, naturalmente
prostrados;
ecoa, ao longe, a música:
Popol Vuh | Aguirre PLAY]
π:
[em voz gutural-lassa]
No princípio era o verbo*...
@:
[com fastio]
Sempre me (en)salsanhei entre enigmas de ovo e de galinha.
π: [mantendo o mesmo tom cavernoso]
(No
início) não existia nem o existente nem o não-existente; não existia o espaço
vazio nem o céu acima dele. O que havia então?**
@: Gente não é certamente e a chuva não bate assim. Fui ver, era o ovário.***
π: És incapaz, não és?
@: Perfeitamente!
π: Tu não tens noção. Não levas nada a sério!
@:
Queres alguma coisa mais séria do que o ovário? Do ovário, nasceu o mundo. O
universo é um Grande Ovário...
[entredentes, falando baixinho para não ser ouvida:]
...ainda por cima de uma puta que não se cansa de parir!
π: Disseste alguma coisa?
@: Não, não, esquece.
π: Mas a propósito, foi o ovo.
@: Não, não, esquece.
π: Mas a propósito, foi o ovo.
@:
A sério?
π: Sim, houve ovos muito antes de haver galinhas, ovíparos que não eram aves.
Queres que te faça um esquema?
Queres que te faça um esquema?
@: Agora
não me apetece, eu depois vou ao Google.
Mas tu és um poço.
Mas tu és um poço.
π: Tens razão, afundo-me com facilidade.
@: Devia
levar-te mais a sério, não era?
π: A mim nem tanto, talvez a ti própria.
@: Xiuuu...
π: O que foi?
@:
[sussurrando:]
Cala-te, acho que não estamos sozinhos.
π: Como assim?
@: [tapando,
a custo, cada boca com cada mão]
Xiuuu....
[a esfera desce e os dois corpos resvalam para o solo frouxos, numa textura de lava, mantendo o decúbito supino.]
@: Esquece.
Acho que estava enganada. Talvez fosse o vento.
π: Ou Deus, ou o Grande Ovário.
[π inspira
profundamente, expira e aspira; senta-se, flectindo o corpo numa espécie de
vénia desajeitada, e volta a deitar-se; o braço direito acompanha todo o
movimento com movimentos de rotação sobre si próprio, como quem transforma uma
meada de lã em novelo, mas em slow-motion]
π: Como foi a tua entrada no novo ano?
π: Como foi a tua entrada no novo ano?
@: A
mesma rotina de sempre.
π: Iniciar o ano a comer restos do ano anterior, com o estômago meio cheio,
letargia total e cabeça a latejar por intoxicação de luzes, vozes e ruídos de
foguetes?
@: Não.
A recolher urina. Tenho uma colecção de mais de vinte exemplares das minhas
primeiras urinas do ano.
π: Bem pensado, se recolhesses unhas dava-te mais trabalho.
@: Desde
quando discutimos excedentes orgânicos?
π: É bom discuti-los. Fazem-nos lembrar quão igualmente limitados somos.
@: Gosto
mais de ti a cagar erudição.
π: Sabes o que distingue Falar de Falhar?
@: O
"H"?
π: Sim, uma simples letra: um H, de preferência mudo.
[e fez-se silêncio... após 5 minutos de silêncio total:]
@: Estás a incomodar-me.
[π: encolhe os ombros, em silêncio, ainda]
[e fez-se silêncio... após 5 minutos de silêncio total:]
@: Estás a incomodar-me.
[π: encolhe os ombros, em silêncio, ainda]
@: A
razão é mesmo uma puta que se vende por meia tuta, não é?
π: É por isso que gosto de poesia.
π: É por isso que gosto de poesia.
@: Eu
detesto poesia. A tua poesia.
π: Eu sei.
@: Recita-me
um poema.
[π sobe novamente
para a esfera, em posição de Principezinho Saint Exusperiano, e declama
profundamente]:
π:
Pintar o mundo é escrever
o orto do elemento,
é fabricar o pigmento primário:
da textura da terra;
do aroma da água;
da aurora do fogo;
na distância do ar.
Pintar o mundo é erguer a essência da
mão
ao fulgor do éter,
é pintar de branco e dar cor,
é lançar a vogal à terra e amanhá-la.
Pintar o mundo é beber do silêncio,
com que se desenha o poema
e escreve a pintura.
Pintar o mundo é abrir a mão à
paisagem
e confiar que tudo, nela, se
transfigura.
@: Muito
mau, mesmo!
π: Concordo, mas estavas a pedi-las. Foi por crer.
@: Agora confundes o verbo querer com crer?
@: Agora confundes o verbo querer com crer?
π: Não!
[π escorrega novamente e junta-se a @]
[π escorrega novamente e junta-se a @]
π: Porquê a arroba?
@: Foi
o símbolo mais próximo que encontrei para Rosapeixe.
π: Ninguém se chama assim.
@: Pois
não, sou um mito da criação.
E o teu pi?
π: De urso, então?
π: De urso, então?
[os dois corpos celestes rebolam-se muito lentamente, síncronos e em uníssono, e ficam em decúbito ventral; por fim, adormecem no chão, sem ressonar]
<--- vasleuqaR <---
________________________________
Nota de Redacção:
A autora não segue o Novo Acordo Ortográfico, para disfarçar a sua ignorância perante o mesmo, e não só.
Nota de Redacção:
A autora não segue o Novo Acordo Ortográfico, para disfarçar a sua ignorância perante o mesmo, e não só.
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*Bíblia Sagrada, Evangelho Segundo S. João 1, 1
** Rgveda [10.129] Nãsadîya-Sukta "Hino da Criação" in Religiões, Edições Paulinas, 2006
*** PLAY Carlos Carrapiço - O poeta
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